Por que a ‘Máquina de dinheiro Infinito’ de SBF quebrou e como a falência da FTX vai influenciar o futuro das criptomoedas
Modelo econômico utilizado por Sam Bankman-Fried para lançar e promover o FTX Token (FTT) é comum em golpes conhecidos como “puxadas de tapete”, mas contém retoques adicionais de sofisticação.
Todas as principais entidades e especialistas do mercado são unânimes em reconhecer que o colapso da FTX, da forma como aconteceu, lesando milhares de investidores do varejo do mundo inteiro, representa um revés sem precedentes para a credibilidade das criptomoedas e da indústria que se constituiu em torno delas. Considerando ainda que os efeitos colaterais que virão a assombrar o mercado por decorrência do efeito dominó causado pela falência da FTX-Alameda estão por ser contabilizados.
Analisando em retrospectiva, o colapso da exchange de criptomoedas FTX e de sua empresa irmã de investimentos e arbitragem, a Alameda Research, era inevitável. O poder que Sam Bankman-Fried alcançou em tão pouco tempo e a sua frágil fortuna eram, de fato, as únicas garantias por trás de seu império.
Ao renegar os princípios fundamentais da indústria a qual queria dominar e utilizar os piores recursos que ela tem a oferecer – criação e emissão de tokens sem valor intrínseco, operações de alavancagem, subserviência a reguladores e à classe política e falta de transparência –, SBF foi esmagado por ela.
De uma coisa, no entanto, ele não pode ser acusado: não foi por falta de avisos. Embora a opacidade dos negócios da Alameda Research e da malversação de fundos dos clientes da FTX tenham surpreendido à grande maioria, em diversas ocasiões SBF explicitou seu modus operandi fraudulento.
Em uma edição do podcast Odds Lots veiculada em abril deste ano repercutida em uma reportagem do Cointelegraph Brasil, SBF descreveu uma fórmula para criar e ganhar dinheiro praticamente do nada valendo-se da tecnologia e dos dispositivos introduzidos pelas criptomoedas no sistema financeiro.
Os analistas da Mercurius Crypto Rafael Castaneda e Orlando Telles apropriadamente a intitularam de “Máquina de Dinheiro Infinita” ao analisarem o passo a passo da queda de SBF na semana passada em uma transmissão no Youtube. E mais, a dupla mostrou como SBF implementou a tal “máquina” primeiramente criando o FTX Token (FTT) e posteriormente replicando o experimento através de outros projetos do ecossistema da Solana (SOL).
Em resumo, o modelo é muito semelhante ao de inúmeros tokens utilizados em golpes conhecidos como “puxadas de tapete”, ou rug pulls, porém com toques adicionais de sofisticação capazes de mantê-lo funcionando indefinidamente.
7 passos para criação de uma “Máquina de Dinheiro Infinita” e o caso FTT
1. Criar um token a partir do nada
A FTX criou o FTT e utilizou a plataforma de negociação para conferir a ele alguma utilidade. Conforme descrito no white paper do FTT, o token oferecia descontos em taxas de negociação e outros serviços oferecidos pela FTX, poderia ser utilizado como colateral em estratégias de negociação alavancada – ironicamente o recurso que viria a causar a ruína tanto da exchange quanto da Alameda –, socialização de ganhos através da pura e simples valorização do token, entre outras utilidades.
2. Emissão, distribuição e comercialização do token no mercado
De acordo com dados atualizados do CoinMarketCap, o FTT possui um suprimento total de 352,1 milhões de unidades. Por ocasião do lançamento, SBF e a FTX disponibilizaram um terço do total para negociação no mercado aberto, mantendo o restante para si.
Como se sabe, os primeiros indícios de que a Alameda Research poderia estar enfrentando uma crise de liquidez vieram à tona quando foi revelado que o FTT constituía a maior parte de suas reservas: aproximadamente US$ 5,8 bilhões. Ao passo que a capitalização total de mercado do FTT no início de novembro era de US$ 3,3 bilhões.
Como explica Castaneda, na prática, caso a Alameda tentasse vender o seu patrimônio em FTT no mercado à vista, “ela não seria capaz de fazê-lo sem derrubar astronomicamente o preço do token, uma vez que, sozinho, o fundo tinha quase o dobro de tokens que todo o mercado junto.” Em seguida, o analista acrescenta:
“A partir do momento em que o seu patrimônio tem um valor teórico de US$ 5,8 bilhões, mas que não tem condições de ser transformado em dinheiro sem perder a maior parte do seu valor, o fato é que ele nunca valeu realmente US$ 5,8 bilhões.”
Esse é um padrão muito comum na indústria de criptomoedas, diga-se de passagem, designado Low Float-High Value. Desmembrando o termo, a primeira metade se refere à baixa quantidade de tokens em circulação no mercado em comparação com o seu suprimento total; a segunda, se refere à capitalização total de mercado diluída, que incorpora não apenas os tokens em circulação, mas também aqueles mantidos à margem do mercado.
3. Inflar o preço do token através de estratégias artificiais de investimento e de marketing
De nada adianta colocar um token no mercado se ele não for capaz de gerar valor para si atraindo o capital de investidores. No caso do FTT, o primeiro ponto de atração foi a marca construída em torno do império de SBF, mas não o único.
SBF divulgava ostensivamente o FTT no Twitter – sob advertências de que “não se tratava de orientação financeira” – em rituais regulares de compras maciças do FTT a preço de mercado para depois queimá-los. Ao mesmo tempo que gerava uma falsa impressão de escassez, induzia seus seguidores a investir no FTT, criando pressão compradora real sobre o token, fator que, por sua vez, contribuía para a sua valorização.
4. Enriquecendo às custas do varejo
À medida que o FTT em circulação no mercado se valorizava, o balanço patrimonial da FTX-Alameda também crescia em função da grande quantidade de tokens mantidos fora de circulação.
Embora se tratasse de uma riqueza ilusória, ela tinha efeitos práticos sobre o patrimônio da FTX, da Alameda e do próprio SBF, contribuindo para a expansão do seu império.
5. Transformando tokens sem valor em dinheiro real
Até aqui, o mecanismo utilizado por SBF é idêntico ao de diversos projetos fraudulentos de criptomoedas que foram utilizados para arrancar dinheiro de investidores do varejo incautos. Em “puxadas de tapete” clássicas, os desenvolvedores drenam a liquidez do mercado e deixam os investidores com tokens desprovidos de valor.
E é aqui que reside a engrenagem central da “Máquina de Dinheiro Infinito” de SBF. O ex-CEO da FTX utilizava os tokens mantidos fora de circulação como garantia para obter empréstimos em moedas fortes. Esse dinheiro era utilizado para fazer a engrenagem girar.
6. Criar um novo token para replicar o processo
Em parte, o dinheiro obtido através desses empréstimos era utilizado para reinvestir em tokens de projetos baseados majoritariamente no ecossistema da Solana. Inclusive para replicar o mesmo modelo, como no caso do SRM, token nativo da Serum, exchange descentralizada (DEX) líder do ecossistema da Solana, como bem apontou o analista de dados on-chain da CoinMetrics, Lucas Nuzzi, em um thread publicado no Twitter em 12 de novembro.
2/ Earlier today, it was reported that FTX valued its SRM position at $2.2bn USD: the largest position on its balance sheet.
Serum’s market cap is less than $88mn, so they likely valued their holdings using a much higher price for SRM, which is probably illegal. pic.twitter.com/f342EJ8Ewk
— Lucas Nuzzi (@LucasNuzzi) November 13, 2022
1/ A FTX pode ter cunhado Serum (SRM) do nada para sustentar seu balanço:
A oferta total do Serum aumentou 60% este ano através de 2 emissões enormes. Ambas não foram divulgadas anteriormente com base em qualquer dado que eu pudesse ter encontrado.
1º Emissão: 19 de fevereiro, 50M SRM
2ª Emissão: 25 de maio, 50M SRM
—
2/ Hoje cedo foi relatado que a FTX avaliou sua posição em SRM em US$ 2,2 bilhões: a maior posição em seu balanço.
O valor de mercado do Serum é inferior a US$ 88 milhões, então eles provavelmente avaliaram suas participações usando um preço muito mais alto para o SRM do que o real valor de mercado do token, o que provavelmente é ilegal.
— Lucas Nuzzi (@LucasNuzzi)
Aqui, vale a pergunta: quais foram os credores que aceitaram conceder empréstimos à Alameda contra garantias tão frágeis quanto o FTT? Não por acaso, as plataformas de empréstimo centralizadas Voyager e Blockfi.
Igualmente não por acaso, quando estas empresas mostraram-se insolventes após o colapso do Terra e ameaçaram travar as engrenagens da “Máquina de Dinheiro Infinita” de SBF, ele se apresentou como o salvador da indústria e se dispôs a resgatá-las.
Agora, tornou-se evidente que mais do que uma preocupação com a saúde do ecossistema ou de atos benevolentes, SBF estava agindo por interesse próprio, visto que a liquidação das garantias em FTT oferecidas pela Alameda para tomar os empréstimos junto àquelas plataformas derrubaria o valor de mercado do token. Além disso, ao incorporá-las, ele anularia as dívidas contraídas no passado, destacou Castaneda em sua análise.
7. O último passo consiste na repetição do processo e assim seguir gerando dinheiro infinito.
Ecossistemas em risco
SBF escolheu um ecossistema específico para desenvolver o seu experimento, a Solana. Não por acaso, trata-se da rede que mais vem sofrendo os efeitos colaterais da falência da FTX.
Desde que os desdobramentos do caso foram ganhando maior magnitude, o SOL desvalorizou mais de 50%, o valor total bloqueado (TVL) nos protocolos de finanças descentralizadas da rede caiu 64%, de acordo com dados do DeFi Llama, versões sintéticas do Bitcoin e do Ether utilizadas no ecossistema DeFi da rede perderam a paridade com os ativos subjacentes em mais de 70%.
Alguns analistas nem sequer descartam a possibilidade de que a Solana venha a perder significativamente a relevância, ou até mesmo a morrer, como decorrência do colapso da FTX.
Segundo Telles, outro ecossistema que pode sofrer abalos no curto prazo é o do Bitcoin, haja visto que a queda do preço do BTC desencadeada pelo colapso da FTX gera pressão adicional sobre os mineradores.
Os guardiões da rede da maior criptomoeda do mercado já estavam sob pressão devido aos altos custos operacionais decorrentes da alta da taxa de hash concomitante ao declínio dos preços, um movimento divergente que foi recorrentes ao longo deste ano.
Além disso, a onda de falências e a crise de liquidez que vêm assolando o mercado adiciona dificuldades extras para o financiemento de operações deficitárias ou mesmo para o refinanciamento de antigas dívidas.
Especialista e personalidades são unânimes: criptomoedas estão em xeque
Os abalos provocados pela queda de um player de tamanha envergadura provavelmente terão efeitos nefastos e duradouros para a indústria de criptomoedas, concordam especialistas e grandes personalidades do setor.
Além da crise de confiança depois de um evento que prejudicou milhares de pessoas no mundo inteiro, a tendência é que o espaço se torne alvo de políticas mais restritivas por parte dos reguladores globais, a começar pelos EUA.
Protagonista e em parte responsável pela queda da FTX, o CEO da Binance, Changpeng “CZ” Zhao admitiu que a falência da rival vai causar um retrocesso de alguns anos no desenvolvimento do ecossistema cripto.
O ex-CEO da Kraken, Jesse Powell, também foi taxativo ao declarar em um thread publicado no Twitter em 10 de novembro que os “danos foram enormes, vamos ter que trabalhar por anos para desfazê-los”.
Ele ainda listou uma série de ações de SBF que deveriam ter levantado suspeitas da comunidade cripto. A primeira é que o ex-CEO da FTX era uma personalidade relativamente nova na indústria, mas “agia como se soubesse de tudo, mesmo tendo se apresentado para a batalha com oito anos de atraso.”
Em segundo lugar, os altos gastos com doações para campanhas políticas sugerem que SBF estava “comprando favores” em Washington. Sua disposição para agradar os reguladores também deveria ter sido vista com maior desconfiança. Algo que só veio a acontecer recentemente, quando SBF apresentou um documento com propostas para regulação do setor diametralmente opostas ao ethos original de descentralização e desintermediação originalmente proposto pelo Bitcoin. Por fim, a “adoração da mídia” por SBF destoava da forma como outras personalidades do setor eram e são tratadas nos grandes veículos da grande imprensa.
Apesar da descrença geral sobre o futuro próximo, a queda da FTX também se apresenta como uma oportunidade para retomar alguns princípios fundamentais do espaço.
Alguns sinais nesse sentido já estão se fazendo sentir já neste momento. O aumento da independência em relação a entidades centralizadas está se refletindo em uma maior adoção de soluções de autocustódia.
O uso de DEX para negociação de criptoativos em detrimento de exchanges centralizadas está crescendo e conta com o suporte de ninguém menos do que do próprio CEO da Binance, sugerindo que o futuro das finanças pode ser, de fato, descentralizado.
Ao mesmo tempo, um movimento por maior transparência das exchanges centralizadas sobre os ativos que mantêm sob custódia está avançando com a adoção de mecanismos de Provas de Reserva.
Por fim, uma bem vinda purificação dos mercados pode estar à caminho à medida que contos de advertência como o do FTT, do SRM, do CRO e tantos outros vêm à tona, revelando a inutilidade e a ausência de valor intrínseco de seus modelos econômicos. Ativos com fundamentos sólidos tendem a se beneficiar deste cenário, especialmente o Bitcoin.
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