Criptomoedas não devem ser reguladas como valores mobiliários, afirma artigo de Harvard

Declarações de reguladores financeiros no Brasil e nos EUA sugerem que a qualificação de criptomoedas como valores mobiliários está na ordem do dia.

Ao final de um ano que será lembrado por colapsos, falências e quedas vertiginosas de preços, a regulação das criptomoedas se impõe como um dos temas mais urgentes para garantir a continuação do desenvolvimento da indústria e a retomada da confiança dos investidores.

Os debates preliminares sobre o tema evidenciam uma tendência que parece nortear a abordagem dos reguladores tanto nos EUA quanto no Brasil: o enquadramento das criptomoedas como valores mobiliários.

No Brasil, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) tem assumido o protagonismo no campo regulatório, colocando-se em condições de igualdade com o Banco Central diante da missão de organizar o funcionamento do mercado no país.

O órgão defende que as duas instituições atuem de forma coordenada para criar e impor as leis específicas sobre o funcionamento do mercado no país após a aprovação do projeto de lei 4401/2021 no final do mês passado.

Atento ao assunto desde que assumiu o cargo em julho deste ano, o presidente da CVM, João Pedro Nascimento, tem afirmado que cabe ao órgão a responsabilidade pela regulação dos ativos digitais que se enquadrem na categoria de valores mobiliários. Inclusive, a CVM lançou um documento de caráter consultivo para estabelecer os parâmetros que regem a caracterização dos criptoativos como tal.

Nos EUA, a abordagem tem sido diferente. Os presidentes da SEC, Gary Gensler, e da Comissão de Negociação de Futuros de Commodities (CFTC), Rostin Benham, manifestaram-se recentemente para afirmar que, exceto o Bitcoin (BTC), dada a sua natureza verdadeiramente descentralizada, todos os demais criptoativos devem ser considerados valores mobiliários.

Tanto a abordagem brasileira quanto a norte-americana são inconsistentes, segundo um artigo recém publicado pelo Departamento de Direito da Universidade de Harvard, intitulado “A modalidade inelutável das leis de valores mobiliários: por que criptoativos fungíveis não são valores mobiliários“.

O artigo analisa a jurisprudência relevante sobre o tema e chega à conclusão de que não há base legal para tratar os criptoativos fungíveis como valores mobiliários. Os autores vão além e propõem uma abordagem analítica clara e objetiva para avalizar ou não a categorização de ativos digitais como valores mobiliários. 

O documento postula que deve ser feita uma distinção entre as transações realizadas para levantar capital a partir de rodadas de financiamentos junto a fundos de capital de risco e investidores institucionais para o desenvolvimento de projetos baseados na tecnologia, incluindo a venda de um criptoativo – que podem e devem ser tratadas como transações de valores mobiliários – do criptoativo em si. De acordo com os autores, este último não é um valor mobiliário. 

A proposta questiona a abordagem que a SEC vem utilizando até então, cujo exemplo mais evidente é a batalha jurídica travada contra a Ripple, e defende que a jurisdição regulatória da agência seja circunscrita a transações cujos fins sejam levantar capital junto a terceiros.

Segundo o artigo, é natural que operações desta natureza envolvam um contrato formal de investimento para determinar os direitos e as obrigações de ambas as partes envolvidas, incluindo as eventuais contrapartidas financeiras.

Assim, estaria caracterizado o que os autores chamam de “esquema de investimento”: um acordo entre as partes, seja ele escrito ou não, sobre a forma como o dinheiro investido poderá reverter na valorização do token subjacente. 

Independentemente dos termos e condições acertados entre as partes, no entanto, a negociação anônima dos criptoativos por terceiros em exchanges de criptomoedas não se configurariam como transações de valores mobiliários.

Os autores fornecem como exemplo o caso do Ether (ETH), token nativo da blockchain da Ethereum, que foi inicialmente comercializado através de uma ICO (oferta inicial de moedas):

“Um tribunal provavelmente teria considerado a venda inicial de Ether aos investidores pelos desenvolvedores do projeto em 2014 como uma transação de valores mobiliários sujeita aos requisitos de registro e divulgação do Securities Act de 1933. Mas a subsequente negociação anônima de Ether, que não é um título mobiliário, em exchanges de criptomoedas ou em transferências ponto a ponto entre terceiros não devem ser consideradas transações de valores mobiliários.”

Ambiguidade da SEC

Contrariamente, diante do vácuo regulatório e de uma legislação específica, a SEC propôs uma abordagem analítica ambígua que parte do grau de descentralização dos protocolos emissores dos tokens para determinar quais criptoativos se configuram ou não como um valor mobiliário.

Baseado em um discurso proferido em 2018 pelo Diretor da Divisão Financeira da SEC, William Hinman, o órgão criou diretrizes de orientação para permitir que sua equipe identifique quais criptoativos devem ser enquadrados como valores mobiliários.

O problema é que a premissa fundamental utilizada pela SEC é falha em sua origem, pois se baseia em aproximadamente 50 fatores para determinar se um projeto é “suficientemente descentralizado”. Como tal, não deveria ser caracterizado como um título mobiliário. Não se trata de uma abordagem científica ou sequer objetiva, afirmam os autores:

“Espera-se que os participantes do mercado analisem um criptoativo e seu projeto subjacente sob muitos fatores vagos, alguns dos quais são baseados em informações não disponíveis publicamente. A análise é complicada na melhor das hipóteses e inviável na pior das hipóteses, particularmente sem orientação sobre quais fatores podem prevalecer sobre os outros e com pouco esclarecimento por meio de regras ou litígio substantivo”.

Uma vez que estes fatores podem variar ao longo do tempo, o nível de descentralização de um determinado projeto pode variar, alterando assim a natureza jurídica do ativo subjacente. No entanto, defende o artigo, nada justifica que o criptoativo em si seja, torne-se ou deixe de ser um valor mobiliário de acordo com as circunstâncias, como sugere a abordagem da SEC.

Na prática, exceto o Bitcoin, e até pouco tempo o Ethereum, antes de fazer a transição de um mecanismo de consenso baseado em Prova-de-Trabalho (PoW) para Prova-de-Participação (PoS), eram considerados commodities. Afora os líderes absolutos do mercado, as diretrizes da SEC oferecem pouca ou nenhuma clareza acerca da natureza financeira do restante dos criptoativos.

Vide o próprio caso da Ripple, que é acusada pela SEC de supostamente ter levantado US$ 1,3 bilhão por meio de vendas de títulos não registrados por meio do token XRP.

Os autores são taxativos em decretar que abordagem da SEC é:

“Pouco prática, se não impossível de ser aplicada à grande maioria dos projetos de blockchain existentes hoje. Não é apoiada por precedentes judiciais… e resultou em distorções que prejudicam os participantes do mercado e a inovação de longo prazo na indústria de criptomoedas.”

Por fim, os autores clamam pela aprovação de um marco regulatório adequado e específico para os criptoativos, para evitar que esta nova classe de ativos emergentes estejam sujeitas a leis que foram projetadas em outros contextos históricos e econômicos. 

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