Sanção ao Tornado Cash apresenta armas dos governos para combater as criptomoedas – mas a comunidade contra-ataca

Mais do que combater uma plataforma específica ou um tipo de serviço, a inclusão do Tornado Cash na lista negra do OFAC abre um precedente para que governos tentem conter o potencial disruptivo das criptomoedas.

Os sinais do mercado costumam funcionar como guias em tempos de crise. Depois que o Departamento do Tesouro dos EUA incluiu diversos endereços de criptomoedas vinculados ao mixer Tornado Cash (TORN) à lista de Cidadãos Especialmente Designados do Escritório de Controle de Ativos Estrangeiros (OFAC), um nicho específico do mercado reagiu à sanção indicando onde estão situados os riscos mais óbvios e imediatos aos investidores e usuários de ativos digitais.

O OFAC efetivamente impediu os residentes dos EUA de acessarem mais de 40 endereços da stablecoin USD Coin (USDC) e do Ether (ETH) conectados ao Tornado Cash. Embora a sanção abra precedentes para ataques pontuais a determinados projetos ou setores do mercado, em um primeiro momento os protocolos de projetos de stablecoins descentralizadas mostraram-se mais sensíveis à decisão.

Logo depois do anúncio, a Circle, entidade privada emissora do USDC, congelou os fundos dos endereços Ethereum listados pelo OFAC. As stablecoins, hoje, funcionam como uma das principais engrenagens do mercado de criptomoedas na medida em que oferecem aos investidores estabilidade de preço e liquidez, além de funcionarem como porta de saída para aqueles que desejam converter seus ativos digitais em moedas fiduciárias.

O USDC é a segunda maior stablecoin em termos de capitalização de mercado, respondendo por US$ 53,9 bilhões de um total de US$ 154 bilhões, de acordo com dados do CoinGecko. Quando um endereço entra na lista negra do Circle, ele não pode mais receber USDC, assim como o USDC controlado pelo endereço é bloqueado.

A sanção ao Tornado Cash não inaugurou a censura por parte de emissores centralizados de stablecoins como a Circle e o líder do mercado Tether (USDT), mas evidenciou os riscos sistêmicos que este tipo de ato governamental pode impor sobre o mercado de criptomoedas, pois desta vez stablecoins descentralizadas – e em tese incensuráveis – mostraram-se igualmente vulneráveis.

DAI

A MakerDAO (MKR) é o protocolo responsável pela maior stablecoin descentralizada em termos de capitalização de mercado, o DAI e a quarta em termos gerais, somando US$ 7,5 bilhões em circulação. 

O DAI é uma stablecoin sobrecolateralizada, ou seja, seu valor é garantido por uma cesta de ativos de reserva geridos pela MakerDAO. Inicialmente, apenas o Ether era aceito como colateral para emissão de DAI. Ao longo do tempo, a cesta de ativos de garantia foi se ampliando para incluir outras moedas, incluindo o USDC.

A emissão de novas unidades de DAI exige sobrecolateralização, mas, no caso do USDC, o protocolo criou um mecanismo intitulado Price Stability Peg (fixação de estabilidade de preço, em tradução livre). O PSG permite que os detentores de USDC emitam novos DAI na proporção de 1:1, abrindo oportunidades de arbitragem quando o DAI sobe acima de US$ 1.

Hoje, o USDC responde por mais de 30% das reservas do DAI, de acordo com o Daistats. Assim, a sanção do Tesouro dos EUA ao Tornado Cash colocou em xeque o real grau de descentralização do DAI, uma vez que o USDC é de longe o ativo dominante nas reservas que o garantem.

Cesta de ativos colaterais do DAI. Fonte: Daistats

Imediatamente após o anúncio da inclusão dos endereços de USDC vinculados ao Tornado Cash na lista negra do OFAC iniciou-se uma discussão sobre os riscos indiretos a que o DAI está submetido por depender de grandes quantias da stablecoin da Circle para manter a paridade com o dólar.

Tokens de protocolos alternativos de stablecoins descentalizadas disparam

Em paralelo, os preços dos tokens de governança emitidos por projetos alternativos de stablecoins descentralizados dispararam. Os tokens de Reflexer Finance (FLX), que emite a RAI, SPELL, que emite o Magic Internet Money (MIM), e Liquity (LQTY), que emite o Liquity USD (LUSD) e subiram 108%, 41% e 34%, respectivamente, de acordo com dados do CoinGecko.

Enquanto isso, os tokens nativos da MakerDAO e da Frax Share (FXS), outro protocolo que utiliza USDC como colateral para emissão da stablecoin descentralizada FRAX, apresentaram um desempenho bastante inferior no mesmo período. O MKR subiu 3,5%, enquanto o FXS acumula perdas de 6,8%, de acordo com dados do CoinGecko.

Em comentários acerca dos últimos acontecimentos, o fundador do MakerDAO, Rune Christensen, expressou receio acerca do precedente aberto pela sanção do Tornado Cash em postagens no Discord do projeto:

 “Se formos bombardeados pelo governo dos EUA, nós simplesmente morreremos. No curto prazo, absolutamente não temos a capacidade de resistir à repressão.”

No caso de uma sanção contra o DAI, ou mesmo do USDC mantido em suas reservas, Christensen afirmou que a MakerDAO seria forçada a executar um “encerramento de emergência”. Christensen disse que planeja propor à DAO (organização autônoma descentralizada) a criação de um Comitê de Votação Descentralizado para elaborar um plano para gerenciar um eventual encerramento de emergência.

Já Sam Kazemian, fundador do Frax Share, declarou no Twitter que tomar a sanção ao USDC como um risco exclusivo do DAI e do FRAX trata-se de uma distorção dos fatos, pois os riscos se estendem a toda a indústria de criptomoedas.

Dizer que o FRAX/DAI correm o risco de entrar para a lista negra do USDC é um equívoco. O OFAC pode sancionar qualquer contrato inteligente/DAO/entidade/protocolo/coisa e tornar ilegal usá-lo/possuí-lo/ajudá-lo/mantê-lo. Como drogas, armas de destruição em massa e tornados.

Também se aplica a LUSD, RAI ou a seus outros dapps/stablecoins favoritos.

— Sam Kazemian (¤, ¤) (@samkazemian)

Contra-ataque

Assumindo que as consequências da sanção ao Tornado Cash “são bem mais sérias do que inicialmente pensava”, Christensen mobilizou a comunidade da MakerDAO para buscar alternativas para diminuir a dependência do USDC para que o DAI mantenha-se como uma stablecoin verdadeiramente descentralizada e relevante.

Uma das propostas sugere a conversão do USDC mantido no tesouro do protocolo em Ether. Mesmo assumindo riscos de que o DAI perca momentaneamente a estabilidade com o dólar, vale a pena correr o risco, afirmou Christensen. O mercado pode finalmente começar a valorizar a descentralização, tornando o risco de um descolamento eventual aceitável, “pois o USDC não é mais aquilo que costumava ser”, acrescentou.

Considerando-se que os riscos inerentes ao USDC não se limitam ao DAI, mas a praticamente todo o ecossistema DeFi da Ethereum, incluindo exchanges descentralizadas (DEX) e protocolos de empréstimo que tem no USDC sua principal stablecoin, a vulnerabilidade a repressão governamental nunca foi tão evidente, concluiu Christensen:

“Este é o meu raciocínio: agora há uma forma comprovada de anular instantaneamente e inconstitucionalmente qualquer contrato inteligente de todas as stablecoins centralizadas à vontade, sem que haja tempo hábil para que desenvolvedores e usuários tomem ações preventivas. Os países se inclinarão a banir as criptomoedas quando suas condições econômicas começarem a se deteriorar.”

Conforme noticiou o Cointelegraph Brasil recentemente, o economista brasileiro Fernando Ulrich declarou que os bancos centrais jamais temeram o Bitcoin (BTC) por não o enxergarem como uma ameaça à soberania estatal sobre a moeda.

Ao incorporarem os recursos da tecnologia blockchain e das finanças descentralizadas às CBDCs (moedas digitais de bancos centrais) é de se esperar que uma oposição mais ostensiva dos estados nacionais a protocolos descentralizados, cujos serviços se sobreponham ao sistema financeiro legado, seja levada à cabo. 

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