O lado oculto da Web3: fontes revelam exploração de ‘embaixadores’ por parte dos protocolos

Mantendo o anonimato, profissionais que atuam na Web3 falam das práticas abusivas cometidas por alguns projetos desta indústria

A comunidade é, talvez, o pilar mais popular da Web3. Projetos criam fortes comunidades, que se unem por acreditar na proposta vendida. É normal, por isso, encontrar ecossistemas ativos, repletos de figuras atuando em favor de seu desenvolvimento.

O mesmo sentimento, no entanto, é explorado para induzir colaboradores ao trabalho não remunerado e integral, com promessas de eventuais pagamentos que nunca chegam. O Cointelegraph Brasil ouviu relatos de diferentes figuras que já passaram por essas situações. O anonimato das fontes e das empresas foi preservado.

Halloween o ano todo

A Fonte 1 conta sua experiência nos programas de “embaixador” de diferentes protocolos da Web3. Esses programas selecionam produtores de conteúdo sobre a indústria blockchain que, em troca, recebem informações exclusivas e antecipadas para suas produções. Na grande maioria desses programas, contudo, não há previsão de pagamento.

“As empresas da Web3 descobriram uma forma de fazer as pessoas trabalharem de graça, acobertada pela falsa ideia de ‘embaixador’, e estão explorando isso. São poucos projetos que realmente pagam algo, em vez do clássico ‘acesso a novidades exclusivas’ que eles vendem”, conta a Fonte 1.

Na teoria, acrescenta a Fonte 1 ao seu relato, os protocolos permitem que os embaixadores produzam conteúdo e solicitem pagamentos às organizações autônomas descentralizadas (DAO, na sigla em inglês) envolvidas na sua governança. “Mas a prática sempre é: você produz, a comunidade nega e você não recebe”, acrescenta.

Quanto ao tempo de trabalho, a Fonte 1 conta que o trabalho de embaixador envolve tarefas complexas. Algumas dessas tarefas incluem: produção de conteúdo, tradução de materiais para a língua nativa da comunidade, atuação como community manager, promoção de conteúdo e participação em transmissões, vídeos e eventos presenciais.

“No caso dos eventos presenciais, muitas vezes os protocolos se recusam a pagar pela estadia. Só custeiam algumas despesas para o embaixador que, no fim do dia, faz marketing de graça.”

Para quem observa de fora, os valores de mercado em centenas de milhões de dólares dos criptoativos e a participação ativa na parte social podem confundir, levando a crer que as remunerações na Web3 são altas para todos aqueles imersos nessa indústria. Àqueles que trabalham junto aos protocolos, porém, a realidade é de muito trabalho e pagamentos incertos.

“Eu vivo aqui. Trabalho mais de 15 horas por dia e não ganho nada bem pra isso. Não existe sábado, domingo, ou feriado. Se não estou comendo ou dormindo, eu estou aqui, na frente do computador”, lamenta a Fonte 1.

Apenas promessas

A Fonte 2 compartilhou duas de suas ‘histórias de terror da Web3’ com o Cointelegraph Brasil. A primeira começa com sua contratação para atuar como community manager de um projeto internacional.

“Era um projeto muito bem falado no país dele. Fechamos uma robusta comunidade e eles pagavam aos community managers míseros 50 dólares por mês, longe do que foi acordado. Além disso, pediam para criarmos de dois a três perfis falsos para ficar no chat conversando, forjando interações. E era um projeto grande, com certificação da CertiK e com muito dinheiro em caixa”, revela a Fonte 2.

Mesmo quebrando o acordo e falando em uma remuneração menor, o projeto não efetuou os pagamentos, desaparecendo com o dinheiro de colaboradores e investidores. 

A outra ocasião na qual a Fonte 2 acabou lesada se deu durante sua primeira atuação profissional na Web3. Um projeto que tokenizava ativos reais convidou a fonte e seu amigo para o cargo de ‘apoiador’, um nome alternativo ao cargo de embaixador. “Mais uma vez, fomos feitos de otário. Eles nos pagaram com um token que não tinha lastro e desapareceram”, conta a Fonte 2.

Da Web2 até a Web3

A terceira fonte anônima ouvida pelo Cointelegraph Brasil relatou que já teve problemas até mesmo com exchanges centralizadas. “Já fiz alguns trabalhos para corretoras no Brasil e a experiência realmente foi complicada. Me contrataram para X mas pediam Y, queriam minha presença em eventos realizados em cidades diferentes, mas sem nenhuma remuneração ou ajuda de custo com transporte, acomodação, alimentação”, conta a Fonte 3.

As experiências ruins, todavia, não se limitam à ‘Web2’. Assim como as outras duas fontes já mencionadas, a Fonte 3 também teve problemas ao trabalhar como embaixador.

“Trabalhei para um protocolo internacional por mais de um ano, e todo santo mês eles atrasavam o pagamento. No início, eram dois dias. Depois passou a ser cinco dias, sete, dez… Até o ponto que ficou insustentável. Cheguei a questionar isso internamente algumas vezes, mas a resposta sempre foi ‘vamos resolver, fique tranquilo’ para o problema”, detalha a Fonte 3.

Em outro caso, um protocolo contratou os serviços da Fonte 3 por três meses, mas desapareceu três semanas após o início dos trabalhos.

“Eles não retornavam mensagens, email, ligações, nada. Interrompi os serviços até esclarecer o que havia acontecido e, no final do terceiro mês, eles voltaram a me responder como se estivesse tudo bem e com uma outra ideia para o protocolo. Mas aí eu já estava irritado com a situação e encerramos o contrato”, diz a Fonte 3.

Um problema real

O pesquisador da Paradigma Education e maximalista de DAOs que se identifica como Guiriba comenta que o modelo de ‘embaixador’ é, de fato, popular na Web3. A maioria dos embaixadores de uma blockchain ou um protocolo fazem pela visibilidade e possibilidade de conexões num projeto. A ‘compensação’ ali dentro, pela experiência de Guiriba, sempre foi tacitamente essa.

Apenas com o passar do tempo, e essa é a promessa do protocolo, um embaixador pode crescer dentro do projeto. “Mas só depois de trabalhar de graça por muito tempo. Não conheço a política de todos os programas de embaixadores, mas conheço algumas pessoas que tiveram essa experiência”, ressalta Guiriba.

O pesquisador questiona, no entanto, o quão efetivo é trabalhar de graça sob a promessa de um emprego. “A visibilidade e o networking podem ser bons, mas não é uma forma também de explorar a mão de obra das pessoas que ainda não têm ‘bons contatos’ para entrar no mercado?”

Não se trata de falta de capital por parte dos projetos, ressalta Guiriba, mas sim de uma prática que se tornou tendência. “Na prática, o embaixador se tornou o novo estagiário. Fica feliz por estar num círculo que dê oportunidade a ele de crescer, mas tem uma remuneração baixa ou inexistente, porque ‘é normal’ ou ‘todo mundo faz assim’.”

Existe solução?

Parte dos problemas relatados pelas três fontes podem estar ligados à fase inicial da Web3, que pode não ter encontrado ainda os melhores padrões para organizar as relações, sejam elas profissionais ou não.

Guiriba reconhece que os pagamentos manuais feitos pelos protocolos são um problema. Para combater isso, é preciso utilizar mecanismos que protejam ambas as partes e automatizem o processo de pagamento.

“Do lado do contribuidor, não dá pra fazer um trabalho e não ser pago, caso o contrato preveja o pagamento. Num serviço prestado, o risco do lado dele pode ser minimizado, com soluções como a Sablier. Trata-se de um app que permite ‘transmitir’ dinheiro ao longo de meses. Pense que, a cada segundo do seu trabalho, você receberá X centavos e, ao final do mês, terá o seu salário completo”, explica Guiriba.

Ao ver a transferência de valores em tempo real, o prestador de serviços tem a segurança de que o pagamento será feito. Além disso, o contratante não precisará pagar integralmente pelo trabalho, caso o prestador não tenha entregue o resultado combinado.

Mesmo assim, salienta o pesquisador, essa é uma solução com base em um cenário ideal. Se a solução para resolver o problema de pagamento é oferecida pelo protocolo, a posição vulnerável do prestador de serviços é mantida. “Apenas quem realmente tem condição de optar por contribuir em projetos que têm boas práticas no pagamento vai conseguir exigir alguma coisa”, explica.

Outra solução, portanto, pode ser o que Guiriba chama de “minimização da governança”. Trata-se do processo de automatização do máximo de processos possíveis, minimizando os custos das transações e a fricção causada pela interação das pessoas envolvidas no processo.

A terceira alternativa seria criar uma plataforma de transparência voltada aos protocolos da Web3, onde contribuidores poderiam denunciar quebras de contrato e outros abusos. “Ajudaria muito se as pessoas soubessem onde estão se metendo, e qual a expectativa ao prestar um serviço para um protocolo, DAO, comunidade, etc”, avalia o pesquisador.

Por fim, Guiriba menciona um estudo do Variant Fund sobre ‘propriedade progressiva’. Nesse modelo, a propriedade dos protocolos é distribuída gradualmente entre os maiores contribuidores para o seu desenvolvimento, indo desde provedores de liquidez até embaixadores.

“E não se trata de dar uma quantidade de moedas mágicas sem liquidez regularmente, mas talvez uma porcentagem do fluxo de capital do protocolo, uma remuneração justa em stablecoin ou até equity no projeto. Entendo que, para aplicar um modelo assim, talvez fosse necessário redesenhar a economia de um projeto. Mas isso é pra pensarmos se vamos continuar reiterando práticas tradicionais que não gostamos ou trazer soluções realmente novas para a Web3”, conclui Guiriba.

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