A catástrofe está entre nós – e impulsionando o Bitcoin
As cenas vistas no Capitólio dos EUA nesta semana só reforçam a ideia de caos e catástrofe para as nossas sociedas – e o Bitcoin é quem tem sai fortalecido.
Até fevereiro de 2020, se alguma pessoa te dissesse que o mundo estava à beira de uma catástrofe global, a maioria das pessoas entenderia a frase mais como um exercício de retórica do que uma previsão consistente.
Dez meses depois, com um mundo paralisado, economias em recessão, uma crise sanitária ainda distante de acabar e desconfiança contaminada por todos os setores da sociedade, a catástrofe parece cada vez mais próxima da realidade.
As cenas vistas nos Estados Unidos nesta semana, com uma horda de apoiadores do presidente derrotado Donald Trump vestindo camisetas com mensagens nazistas, bandeiras de confederados, armas na cintura e chifres na cabeça invadindo o Congresso dos EUA na semana mais importante de sua história em pelo o menos 40 anos, só reforçam o cenário apocalíptico.
Se a maior nação do mundo ocidental permite cenas deprimentes como as vistas nesta semana, o que dirá o resto do mundo?
Em um artigo publicado nesta semana, o diretor-editorial do American Institute for Economic Research Jeffrey A. Tucker trata sobre diversos aspectos da pandemia de coronavírus, em especial a resposta das nações à crise sanitária, com imposição de lockdowns severos e fechamento da economia.
Para o economista norte-americano, a decisão de governos de confinar populações e restringir a atividade econômica sob justificativas sanitárias é absurda. Os Estados Unidos, como o Brasil, tem dimensões continentais, o que faz com que a imposição de lockdowns – escalada ainda pela independência legislativa dos 50 estados dos EUA – seja muito controversa e complicada.
Apesar da posição cética quanto à dimensão da crise sanitária e suas consequências – mais diretamente: mortes em massa -, ele levanta questões importantes sobre a pandemia, como a imposição forçada do uso de máscaras, o lockdown severo como única solução possível, a passividade de governos para balancear os impactos na saúde e na economia, entre outros.
Entre aqueles que alimentam e apostam no caos como ferramenta de barganha política, os dois países também se equiparam: Donald Trump, estimulando os atos no Capitólio, taxando-os como “corajosos” por não sujeitar o país às imposições da OMS e culpar a China, principal rival geopolítico dos EUA, pela catástrofe global.
Jair Bolsonaro não tem a mesma “sorte”: desde o início do mandato, o presidente brasileiro se alimenta de declarações conflituosas, com o objetivo de confundir, desmoralizar e esvaziar quem se opõe a ele – a sociedade brasileira organizada, dentre ela a mídia tradicional, as universidades, governadores, prefeitos, organizações sociais e órgãos de controle e fomento civil. Quando criticado, ele apela ao exagero.
Bolsonaro utiliza de táticas similares, apelando para o caos social como justificativa para a tomada de medidas mais drásticas (todas já anunciadas pelo presidente e seus aliados) pelo governo: fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, eleições em papel sujeitas à manipulação, mais poder para as Forças Armadas, menos poder e organização para a sociedade civil. O presidente brasileiro já tentou colocar em prática seu blefe, mas faltava um ingrediente: caos social.
Trump e Bolsonaro apresentam outras estratégias em comum, buscando o encantamento das massas pelos mesmos caminhos: populações armadas, hipervalorização de realizações de seus governos, desprezo pelos valores que formaram a democracia e a república, além de ameaças frequentes aos demais poderes.
Até esta semana, as ameaças baseavam-se em retórica, seguidas de “desmentidos” cada vez menos verdadeiros. Mas a derrota de Trump nas eleições radicalizou o discurso – e as ações.
No mundo que vive a maior catástrofe desde as duas Grandes Guerras, Trump e Bolsonaro enxergaram uma oportunidade de lucrar politicamente, estimular a centralização de poder e o autoritarismo até o limite do que conhecemos como democracia. Para isso, alimentam milhões de pessoas frustradas com o sistema político e civil das sociedades capitalistas com uma retórica populista claramente inspirada no fascismo dos anos 1930/1940.
O distanciamento histórico da década pré-Segunda Guerra Mundial – e uma era de hiperinformação em que o peso histórico de crimes contra a humanidade se dissipa em debates vazios e com verdades inventadas – seguem levando as sociedades contemporâneas para o mesmo abismo de Hitler e Mussolini – e em condições bastante parecidas. E o poder da propaganda – e da mentira – segue sendo fundamental para a sobrevivência das sociedades capitalistas.
Se a II Guerra Mundial marca uma ruptura com as sociedades autoritárias que sobreviveram até o século XIX, com a disseminação de regimes republicanos e democráticos ao redor do mundo, a pandemia de coronavírus, as pressões do chamado capitalismo tardio, a recessão econômica brutal que se avizinha e suas consequências ainda desconhecidas nos empurram para o conflito, a catástrofe e a incerteza – combustíveis para quem aposta no caos.
Capitalismo Tardio ou Pós-Capitalismo
Talvez uma das características mais interessantes do capitalismo tardio que vivemos seja os movimentos das oposições a governos como Trump e Bolsonaro. Até os anos 2.000, a direita global defendia a conservação de valores e dos sistemas vigentes, propositalmente confundindo capitalismo com democracia.
Hoje, a ultradireita trumpista e bolsonarista prega a ruptura, a centralização de poder, o autoritarismo, a extinção de supostos “privilégios para as minorias”, o personalismo dos líderes e o fim do que conhecíamos como social-democracia – uma herança que vem da Guerra Fria como resposta capitalista ao socialismo. Diante deste cenário, hoje cabe à oposição – desde a direita moderada até a esquerda – defender o sistema, a democracia e a república – a política deixou de vender sonhos e passou a defender a continuidade “de tudo que está aí”.
Os socialistas mais radicais – que um dia pregaram a revolução e a ditadura comunista – e conservadores de carteirinha hoje ocupam o mesmo barco confuso, reagindo a cada absurdo com a constituição em uma mão, os valores democráticos na outra. Nenhum deles responde ao principal sentimento da nossa sociedade, o que impulsiona figuras autoritárias em todo o mundo: a frustração coletiva.
O termo “capitalismo tardio” foi usado pela primeira vez pelo economista alemão Werner Sombart. Apesar dos artigos acadêmicos considerarem o período entre a Segunda Guerra Mundial e o fim dos anos 1970, desde 2016, o termo tem sido usado nos Estados Unidos e Canadá para se referir a absurdos, contradições, crises, injustiças e desigualdades da sociedade moderna. Na Academia, outro termo já surgiu para se referir ao capitalismo contemporâneo: o pós-capitalismo.
Enquanto o mercado financeiro global beneficia bilionários, herdeiros e intermediários dos mais variados setores (alguns milhares por ano), a maioria da população – bilhões de pessoas – vive de sobras na economia, com cada vez menos poder de compra, menos possibilidade de mobilidade social e – afinal, seguimos no capitalismo – menos poder político.
Bitcoin e o caos
O Bitcoin foi desenvolvido em 2008 por Satoshi Nakamoto, até hoje um pseudônimo misterioso na criptoesfera. A ideia de Nakamoto era criar uma moeda global para oferecer resiliência em momentos de crise, sem a possibilidade de centralização, com suprimento finito e programado, além de flutuação de preços resistente à inflação.
Quando a maior criptomoeda sentiu o efeito da explosão da crise de coronavírus, em março de 2020, caindo para US$ 3.800, muitos duvidaram da capacidade do Bitcoin de se tornar uma moeda “porto seguro”, resistente a crises, como foi o ouro durante séculos. Hoje, dez meses depois, com a moeda valendo dez vezes mais, o comportamento do Bitcoin parece fortalecer sua imagem como ativo de proteção econômica.
Nassim Nicholas Taleb, autor do livro Antifragile: Things That Gain from Disorder, define o termo “antifragilidade” para ativos que “crescem na desordem”, e parece ser feito sob medida para o Bitcoin:
“A antifragilidade está além da resiliência ou robustez. Algumas coisas se beneficiam de choques; elas prosperam e crescem quando expostos à volatilidade, aleatoriedade, desordem e fatores de estresse e amam a aventura, o risco e a incerteza … O resiliente resiste a choques e permanece o mesmo; o antifrágil fica melhor.”
Em novembro de 2020, o analista Pedro Febrero também reconheceu o BTC como um “sistema antifrágil”, lembrando:
“Após cada incidente, o Bitcoin ficou mais forte em termos de adoção de rede e preço. A probabilidade de continuar operando com sucesso sob ataques (antifragilidade) é muito maior do que qualquer sistema fechado.”
O mecanismo de consenso monetário do Bitcoin, segundo o chefe de desenvolvimento de negócios da Unchained Capital, fortalece a “criação de ordem no caos” para a criptomoeda:
“Ao eliminar a confiança nas contrapartes centralizadas, todos os participantes da rede podem confiar e, em última instância, confiar que a política monetária é segura e que não estará sujeita a mudanças arbitrárias. Pode parecer um paradoxo, mas é perfeitamente racional. Em última análise, uma ordem espontânea emerge da desordem e se fortalece à medida que cada choque do sistema exógeno é absorvido. ”
Obviamente, nem todos os analistas financeiros confiam no Bitcoin como uma resposta a crises – especialmente os mais conservadores, que defendem bancos centrais e autoridades monetárias “autônomas” e supostamente “livres de política”.
Para além do Bitcoin, sua tecnologia adjacente, a blockchain, também é citada por uma série de especialistas como uma das respostas possíveis à crise econômica global.
Como noticiou o Cointelegraph Brasil, David Gibbin, CEO de uma desenvolvedora de softwares para o mercado financeiro, a Investtools, defendeu por exemplo que a tecnologia blockchain poderia “livrar o país do caos político e institucional” que afeta o país desde 2014:
“Diante do atual cenário político, em que notícias sobre corrupção e lavagem de dinheiro são cada vez mais frequentes, o anseio da população por ferramentas de transparência nos governos é inevitável. Embora uma solução para o controle de gastos públicos pareça utópica, dada a dimensão do problema no Brasil, ela existe e está em uma tecnologia conhecida por muitos, mas realmente compreendida por poucos: a blockchain.”
Ele ainda diz que “a tecnologia (blockchain) tira do governo e de outras entidades passíveis de corrupção os papéis de prestadores de contas e de emissores de uma ‘verdade’ cada vez mais frágil”.
Gibbin não está sozinho ao defender a blockchain em busca de transparência e eficiência para o Estado. Em um artigo recente para o portal Outras Palavras, o professor de economia da PUC-SP, Ladislay Dowbor, escreveu que o endividamento global, entre famílias, empresas e governos, chegou em 2018 ao dobro do PIB mundial – uma equação sem solução aparente. Ele cita um “capitalismo parasitário”, nas palavras do filósofo Zygmunt Bauman:
“O sistema atual é um sucesso ao transformar uma enorme maioria de homens, mulheres, velhos e jovens numa raça de devedores. […] Sem meias palavras, o capitalismo é um sistema parasitário. Como todos os parasitas, pode prosperar durante certo período, desde que encontre um organismo ainda não explorado que lhe forneça alimento. Mas não pode fazer isso sem prejudicar o hospedeiro, destruindo assim, cedo ou tarde, as condições de sua prosperidade ou mesmo de sua sobrevivência.”
O professor lembra que no Brasil e no mundo as populações têm percebido que bancos e entidades financeiras têm se beneficiado dos recursos financeiros de clientes, cobrando juros sobre os mais variados serviços, sem contrapartida para que seus recursos fiquem custodiados em suas contas bancárias.
“Em outros termos, temos de encontrar na mesma transformação tecnológica a base da nossa liberação do dreno permanente a que somos submetidos, um pedágio não só inútil como contraproducente”, escreve ele. O professor defende a desintermediação – outro princípio do Bitcoin – e cita exemplos ao redor do mundo, incluindo o das criptomoedas e da tecnologia blockchain:
“Precisamos desses intermediários? Temos as alternativas dos bancos cooperativos (Polônia), dos bancos comunitários de desenvolvimento (114 já no Brasil), das caixas econômicas locais (Sparkassen, na Alemanha), das moedas sociais (o palma, o sampaio e tantas outras no Brasil), dos bancos públicos locais (Bank of North Dakota, nos Estados Unidos), das ONGs de crédito (Placements Éthiques, na França), do contato direto e sem atravessadores entre produtores e clientes (agricultura familiar no Quênia) e, inclusive, da desintermediação mais radical com moedas virtuais e trocas comerciais por meio das tecnologias blockchain.”
De fato, a blockchain e o Bitcoin não podem resolver todos os problemas econômicos contemporâneos, especialmente os políticos e sociais, mas podem atuar nas sociedades aplicando um de seus princípios-chave: a descentralização.
Diante das cenas do Capitólio dos EUA, um usuário brasileiro no Twitter lembrou da tecnologia blockchain para questionar o bloqueio de Donald Trump nas principais redes sociais ocidentais: “Se tivéssemos redes sociais descentralizadas com tecnologia blockchain, nada disso seria possível”.
Realmente, se fosse esse o caso – aplicando-se ainda o mecanismo de consenso do Bitcoin – talvez nem Donald Trump nem Bolsonaro teriam permissão para estimular os crimes de seus seguidores usando as plataformas de rede social.
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