Não precisamos de um novo regulador para uma regulação de criptoativos melhor
A maioria das empresas de criptoativos reclama que existem muitos órgãos reguladores globalmente e particularmente nos EUA, e protestam que essa regulamentação sobreposta e até mesmo contraditória impede o crescimento e a inovação. A “sopa de letrinhas” dos órgãos dos órgãos reguladores federais dos Estados Unidos – SEC, CFTC, DOJ, FDIC, FTC e IRS, para citar alguns – é apenas o começo.
A nível estadual, há 50 procuradores-gerais para enfrentar, sem mencionar as várias agências e reguladores estaduais que fazem cumprir a miríade de leis aprovadas por legislaturas estaduais e aplicadas pelos tribunais. A moeda digital não tem fronteiras e, embora os reguladores tenham, eles podem estender seu alcance regulatório se os mercados, consumidores e instituições em suas jurisdições forem afetados.
Algumas startups de cripto e líderes de fintechs defendem um novo órgão regulador que substitua essa quantidade de reguladores, como uma forma de agilizar a conformidade regulatória e reduzir a sobreposição entre as agências concorrentes.
A Autoridade de Conduta Financeira (FCA, na sigla em inglês), no Reino Unido, é frequentemente citada como um exemplo de agência central substituta que reconhece e promove a inovação por meio de suas políticas, e muitos defenderam uma agência semelhante nos EUA.
Alguns líderes de fintechs até ameaçaram deixar os EUA inteiramente e mudar para regimes regulatórios mais amigáveis no Reino Unido ou em qualquer outro lugar.
Sem dúvida, é doloroso e caro hoje para jovens startups de criptoativos e até para fintechs maduras navegar na matriz de regulamentações federais e estaduais. Mas, apesar da estrutura regulatória aparentemente caótica e onerosa, o sistema dos EUA fornece confiança para investidores e consumidores.
Essa abordagem de regulamentação de ativos digitais permite que a inovação floresça, evitando fraudes, especulação prejudicial e bolhas de ativos. Para estimular a inovação e permanecer competitivo com outros mercados internacionais, os reguladores dos EUA precisam reduzir as “áreas cinzentas” para que mais fintechs e empresários possam entender mais claramente as regras do jogo. O problema não são os muitos reguladores nos EUA, mas sim a falta de clareza e a sobreposição de regulamentações.
As muitas autarquias americanas são criaturas de diferentes leis que foram aprovadas em resposta a diferentes crises nacionais – o Gabinete do Controlador da Moeda (OCC, na sigla em inglês) foi parte integrante do desenvolvimento de um sistema bancário nacional para financiar a Guerra Civil, A Comissão de Valores Mobiliários (SEC, na sigla em inglês) e a Corporação Federal Asseguradora de Depósitos (FDIC, na sigla em inglês) foram estabelecidas no despertar da Grande Depressão, e o Conselho de Supervisão da Estabilidade Financeira fez parte das reformas sob a Lei Dodd-Frank.
O que foi herdado é um cenário regulatório complexo, com muitos reguladores e mandatos estatutários diferentes. Por exemplo, enquanto a SEC e a Agência de Proteção Financeira ao Consumido (CFPB, na sigla em inglês) são principalmente responsáveis pela proteção do investidor e do consumidor, as agências bancárias federais dos EUA estão focadas na segurança e solidez das instituições bancárias e na estabilidade do próprio sistema financeiro.
“APESAR DA ESTRUTURA REGULATÓRIA APARENTEMENTE CAÓTICA E ONEROSA, O SISTEMA DOS EUA FORNECE CONFIANÇA AOS INVESTIDORES E CONSUMIDORES.”
Ter um monólito como regulador pode ser mais fácil e prático no curto prazo, mas esse modelo também pode representar desafios e riscos significativos se esse regulador não entender as coisas como elas realmente são. Embora mais complexo, o sistema regulatório dos EUA cria confiança de longo prazo para o investidor e para o mercado.
Dada a ampla latitude de reguladores, particularmente na regulamentação de fintech e inovação financeira, o resultado são regulamentações que podem ser flexíveis e elásticas conforme a tecnologia evolui. A existência de vários reguladores financeiros federais significa que nenhum regulador único definirá o padrão para “tudo de cripto”.
A diversidade da regulamentação em nível estadual também pode ajudar a informar quais abordagens regulatórias funcionam e quais não. Em certo sentido, as agências reguladoras podem competir umas com as outras para encontrar o equilíbrio certo entre inovação, segurança e solidez. No nível estadual, Nova York e Wyoming são exemplos de estados que lideraram (embora de maneiras diferentes) na regulamentação de ativos digitais. O tempo dirá qual abordagem é mais eficaz no longo prazo.
Essas tensões entre os reguladores às vezes são frustrantes. Por exemplo, isso significa que os EUA ficaram para trás no desenvolvimento de “sandboxes regulatórios” abrangentes e coordenadas que outras jurisdições, com regulamentos muito mais flexíveis, têm fomentado. Mas, em última análise, esse cenário regulatório exclusivamente americano pode resultar em um mercado mais estável que pode amadurecer solidamente de maneira estável. Os reguladores nos EUA têm orgulho de cultivar um sistema financeiro altamente estável que causa inveja ao restante do mundo. A inovação, porém, estimula-os a não ficarem para trás no cenário global.
A complexidade regulatória não é nova. Embora possa complicar a vida de algumas empresas de criptoativos, ela é consistente com a forma como os reguladores financeiros dos EUA abordam a regulamentação em geral. Não há nada de mágico nos ativos digitais.
Para qualquer novo produto ou serviço, os reguladores ainda precisam perguntar e responder às seguintes perguntas: qual é a atividade, quem a toca, como essa atividade pode prejudicar o sistema financeiro ou os usuários, como os mercados e consumidores podem se beneficiar, por exemplo, pelo aumento acesso, taxas mais baixas e maior transparência? Embora essas perguntas sejam claras, as respostas são complexas e muitas vezes se cruzam.
Mas por que não acabar com toda essa sobreposição regulatória e criar uma única agência para supervisionar cripto e os ativos digitais, pelo menos no nível federal?
Antes de mais nada, isso exigiria um ato do Congresso. Dada a baixa probabilidade de um acordo bipartidário sobre uma nova legislação em uma Washington dividida, a responsabilidade recai sobre os reguladores para alavancar seus poderes e regulamentos elásticos de forma criativa. Coordenação e comunicação, no entanto, são fundamentais e muito alcançáveis.
Para tanto, deve ser formado um conselho para compartilhar conhecimentos e experiências, evitar redundâncias e melhorar a comunicação entre os órgãos reguladores e todos os participantes do sistema.
O conselho poderia ser modelado, pelo menos em parte, no Grupo de Trabalho do Presidente sobre Mercados Financeiros, que busca melhorar a integridade, eficiência, ordem e competitividade dos mercados financeiros dos EUA, enquanto mantém a confiança dos investidores. O trabalho de qualquer conselho do tipo poderia se beneficiar significativamente por ter um número maior de membros para incluir não apenas reguladores, mas líderes de pensamento da academia, do setor sem fins lucrativos e da comunidade de startups.
Em setembro, reguladores bancários de 49 estados divulgaram um plano para agilizar os exames de conformidade para empresas de serviços monetários (MSB, na sigla em inglês). Isso economizará tempo e dinheiro tanto para as empresas e como para os reguladores e tornará mais fácil para os MSBs fazerem negócios nos Estados Unidos. Esse modelo de abordagem colaborativa nos fornece um roteiro para se alcançar uma regulamentação melhor e mais eficiente nos Estados Unidos.
Aplicando o mesmo o espírito de colaboração com outras áreas, como processos KYC (sigla, em inglês, para o processo de verificação de identidade), levantamento de capital e licenças de passaporte, reduziria igualmente os atritos e permitiria formas compatíveis, contínuas e menos onerosas para as startups fazerem negócios. Uma abordagem colaborativa também tem mais probabilidade de resistir aos ventos políticos inconstantes, evitando disputas partidárias que prejudicaram o trabalho do CFPB, por exemplo.
Não precisamos de um novo “super-regulador” para os ativos digitais. Em vez disso, precisamos melhorar a comunicação e colaboração entre reguladores, empresários, investidores e bancos. Isso fortalecerá a supervisão, protegerá os consumidores, manterá a integridade do mercado e, talvez o mais importante, levará a um sistema financeiro mais bem equipado para enfrentar os desafios do futuro.
Este artigo foi originalmente publicado na Coindesk, que, a pedido da autora, nos cedeu os direitos de tradução.
Sandra Ro é ex-banqueira de derivativos e executiva de infraestrutura de mercado e CEO do Global Blockchain Business Council, uma indústria suíça sem fins lucrativos que está ajudando a construir a próxima indústria multitrilionária por meio de parcerias, educação e apoio.
Donna Parisi é a chefe global de serviços financeiros e fintech do escritório de advocacia Shearman & Sterling.