Movimentos de extrema-direita no mundo abraçam criptomoedas e preocupam autoridades
Oposição ao estado, individualismo, fanatismo religioso e crença cega em teorias da conspiração aproximariam adeptos de criptomoedas dos extremistas de direita, afirma reportagem publicada esta semana na revista Carta Capital.
Uma reportagem publicada pela revista Carta Capital em sua edição impressa desta semana associa as criptomoedas aos movimentos globais de extrema direita e a grupos terroristas, e sugere que, em ano eleitoral, os ativos digitais poderão ser utilizados para financiar campanhas de desinformação e incitação ao ódio no Brasil.
A reportagem sugere que, mais do que um instrumento para captação de recursos e realização de transações financeiras, há uma afinidade ideológica entre os defensores das criptomoedas e os movimentos conservadores radicais organizados em democracias como os EUA, o Canadá e, possivelmente, o Brasil. Em comum, bitcoiners e extremistas compartilhariam uma aversão pelo estado e pela sociedade civil organizada, uma louvação ao individualismo, um fanatismo religioso dogmático e uma suposta crença abnegada em teorias da conspiração.
No caso dos adeptos das criptomoedas, afirma a reportagem, a descentralização seria o princípio canônico da seita e o estado e o sistema financeiro seriam partes de uma engrenagem “que rouba dinheiro dos indivíduos para entregá-lo a uma cabala sinistra que age nos bastidores, e secretamente controla o governo”. Em seguida, os compara aos conspiracionistas do QAnon, “cujos seguidores acreditam que a cúpula do governo norte-americano e do Partido Democrata é composta de predadores pedófilos.”
Para sustentar a tese, a reportagem se escora nos casos da invasão do Capitólio por apoiadores do então presidente Donald Trump em contestação ao resultado das eleições em que ele foi derrotado pelo candidato democrata Joe Biden, e do movimento antivacina dos caminhoneiros canadenses, que bloqueou a fronteira entre o Canadá e os EUA e cercou a capital Ottawa, provocando transtornos que fizeram com que o primeiro ministro, Justin Trudeau, invocasse a Lei de Emergências para congelar os recursos dos manifestantes envolvidos nos protestos.
No caso da invasão ao Capitólio, foi provado que os líderes do movimento haviam recebido 28 Bitcoin (BTC) (algo em torno de US$ 500.000 à cotação da época) alguns dias antes do ato. Já no caso do “Comboio da Liberdade”, como foi intitulado o protesto no Canadá, as criptomoedas passaram a ser utilizadas para financiar o movimento depois que instituições financeiras e meios de pagamento tradicionais de titularidade dos manifestantes foram bloqueados pelo governo. As doações em criptomoedas teriam superado US$ 1 milhão, embora representassem apenas 13% do total arrecadado.
Brasil
Quanto a ações de financiamento coletivo baseadas em criptomoedas no Brasil, a reportagem não apresenta qualquer evidência concreta. Exceto pelo caso até então solitário do blogueiro e youtuber de extrema-direita, criador do canal Terça Livre e apoiador do presidente Jair Bolsonaro (PL), Allan dos Santos.
Em outubro do ano passado, Allan teve sua prisão decretada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes. Foragido nos EUA, com suas contas bancárias bloqueadas e seus perfis nas redes sociais suspensos, o influenciador recorreu ao Telegram para comunicar-se com os seus seguidores. Em uma mensagem enviada no final de outubro, Allan divulgou uma chave pública para receber doações em Bitcoin.
Registrado na blockchain do Bitcoin, o endereço é público e pode ser identificado e verificado por qualquer um. Embora a Carta Capital não tenha revelado tal informação, nesta quarta-feira, 3, o endereço divulgado publicamente por Allan dos Santos continha 0 BTC. Entre a solicitação de doações e a data do último saque, em 9 de novembro do ano passado, recebera apenas 0.01744281 BTC – aproximadamente R$ 3.716.
O resto são suposições. Apesar de que a própria reportagem admite que os radicais brasileiros ainda têm livre acesso a meios de pagamento tradicionais, como PayPal ou PagSeguro, por exemplo. O texto deixa no ar a suposição de que, uma vez que estes canais eventualmente venham a ser interditados pelas autoridades, recorrer às criptomoedas será a solução mais óbvia e natural.
Crime organizado e terrorismo
A reportagem também investe na associação das criptomoedas com o crime organizado, afirmando que é impossível mensurar com precisão a quantidade de ilícitos praticados com a intermediação de criptomoedas ou os valores movimentados, pois quaisquer tentativas nesse sentido chegariam a somas muito inferiores à realidade. Ainda segundo a reportagem, este número seria muito maior se os criminosos não se sentissem eles próprios inseguros e vulneráveis para manejar os dispositivos técnicos envolvidos nas transações de criptoativos.
Para ilustrar o papel das criptomoedas no financiamento do terrorismo, a reportagem cita uma operação do FBI que apreendeu US$ 2 milhões em criptoativos vinculados a carteiras digitais sob custódia do Estado Islâmico, da Al-Qaeda e do braço armado do grupo palestino Hamas. Contraditoriamente, um claro exemplo da transparência e da rastreabilidade de ativos publicamente registrados em redes blockchain negados algumas linhas atrás na própria reportagem.
Por fim, a reportagem menciona um relatório do Southern Poverty Law Center, uma das principais instituições de estudo sobre grupos extremistas norte-americanos, que associou ao menos 102 grupos e líderes extremistas a endereços públicos para recebimento de transferências e doações em criptomoedas. Alguns deles seriam early adopters, ou seja, teriam adotado o Bitcoin durantes os primeiros anos de operação da rede. Portanto, supõe-se que poderiam ter acumulado milhões de dólares ao longo dos últimos dez anos.
Um deles seria o nacionalista e supremacista branco Nick Fuentes, líder do chamado Groyper Army. Fuentes recebeu uma doação de 250 mil dólares em criptomoedas de um endereço associado a um extremista francês e está sendo investigado por ter destinado parte destes recursos para organizar a invasão do Capitólio.
No final do dia, as criptomoedas são um instrumento de retenção e transferência de valor neutros como o dinheiro vivo. Como tal podem ser usados tanto para o bem quanto para o mal. Conforme noiticiou o Cointelegraph Brasil recentemente, além do Canadá, houve no mínimo outras cinco ocasiões em que o Bitcoin serviu de instrumento para burlar restrições impostas por autoridades governamentais em benefício da liberdade financeira dos cidadãos.
Nos últimos dias, as criptomoedas também se tornaram um instrumento importante para que a comunidade internacional pudesse contribuir com os esforços de guerra da Ucrânia frente à invasão de seu território pela Rússia.
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