Bitcoin agora “é” moeda
Para termos a exata dimensão do que significa o bitcoin, criptomoeda que com apenas 12 anos de existência se tornou moeda oficial de um país, antes é preciso entender alguns pontos.
O que é dinheiro? O que é moeda?
O dinheiro é, na sua forma mais básica, qualquer método para transferir algum tipo de valor de uma pessoa para outra. Comida, sal, couro animal, ouro, prata, já foram usados como “dinheiro” ao longo da história.
“Uma moeda é a execução real do conceito teórido de dinheiro” (Hosp, 2017).
Como se percebe, a moeda pode ter natureza estatal ou natureza privada, como já comentei em um artigo anterior desta coluna, que você pode conferir aqui.
Sabendo disto, qual é a natureza do bitcoin?
A natureza privada do bitcoin
É importante observarmos que o bitcoin não está atrelado à nenhum Banco Central, nem à economia de um país específico.
A flutuação de seu preço está ligada apenas a sua oferta e demanda. De modo que se pode dizer que o bitcoin possui natureza privada, é emitido e garantido por algoritmos (pela matemática e criptografia) executado via blockchain.
Mas o que é moeda sob uma perspectiva econômica?
Os economistas consideram algo como moeda quando engloba as seguintes características: meio de troca, unidade de conta e reserva de valor.
Em países com economias fracas e altos índices de inflação, podemos perceber que mais e mais pessoas estão dispostas a guardar bitcoin para se proteger da inflação (que gera perda de poder aquisitivo) e de crises econômicas, utilizando o ativo como reserva de valor.
Não obstante, embora cada vez mais comerciantes em todo o mundo aceitem criptomoedas como meio de pagamento (meio de troca), em agosto de 2018 publiquei um artigo apontando que sob a perspectiva econômica, o bitcoin não poderia ser considerado moeda “ainda”, pois a alta volatilidade desestimulava sua adoção no “mainstream” para precificação de produtos e serviços (unidade de conta). De todo modo, destaquei no texto que o valor intrínseco do bitcoin estava no sistema operacional, na arquitetura blockchain, sem a qual esse ativo virtual não existiria.
Ainda, naquela ocasião, disse que o bitcoin ainda não cumpria satisfatoriamente as funções de uma moeda, mas destaquei que não dava pra desconsiderar que bitcoin estava conosco desde 31 de outubro de 2008, data de publicação do white paper do bitcoin, e que mais de dez anos depois, não só o termo “bitcoin” tornou-se bastante conhecido do público em geral, como várias outras criptomoedas surgiram de plataformas tecnológicas mais ou menos semelhantes àquelas criadas pelo misterioso Satoshi Nakamoto.
Moeda do ponto de vista jurídico
Sob o aspecto legal, para o bitcoin ser moeda, exige-se “curso forçado” ou, como se diz em inglês, “legal tender”. Melhor explicando:
“Sob a ótica jurídica, criptomoedas serão “moeda” se a lei assim a definir.” (Revoredo, agosto de 2018).
Afinal, o que é curso legal?
Curso legal (legal tender, na língua inglesa) é um termo da lei comercial e significa que os cidadãos devem aceitar “X” se oferecido em pagamento de uma obrigação, ou em troca de entrega da uma propriedade.
A moeda com curso legal é fundamental para o direito comercial, que é uma camada fundamental de qualquer sistema jurídico.
O caso da Alemanha
Em 2018, a Alemanha promoveu o bitcoin à categoria “equivalente à moeda” sob o ponto de vista jurídico, “quando usado como meio de pagamento” (Bundesministerium der Finanzen. In: Umsatzsteuerliche behandlung von bitcoin und anderen sog virtuellen waehrungen, em 27 de fevereiro de 2018).
Mas é importante notar que este caso foi apenas no caso específico do bitcoin ser usado como meio de pagamento; e não o seu reconhecimento como dinheiro.
Até hoje, a totalidade dos países não possui uma lei que confere ao bitcoin tal qualidade.
E como tal, o bitcoin posiciona-se em direção oposta às moedas fiduciárias (aquelas cujo valor advém da confiança que as pessoas têm em quem as emitiu).
O caso do Japão
Em 2017, o Japão promulgou sua Lei de Moeda Virtual, revisando partes de sua Lei de Serviços de Pagamento pré-existente (PSA).
Já em 2020, o Japão alterou novamente seu PSA, bem como seus Instrumentos Financeiros e Lei de Câmbio.
Vale ressaltar que tais leis criam a categoria de “ativos criptográficos” – que inclui bitcoin – e regula vários aspectos das transações comerciais envolvendo “Ativos criptográficos”.
Pois bem, de acordo com essas leis, ativos criptográficos são reconhecidos como “métodos de pagamento”.
Logo, essas leis não reconhecem ativos criptográficos como moeda legal no Japão, nem igualam criptoativos à moeda fiduciária.
O anúncio do Presidente de El Salvador no Bitcoin Miami 2021
No final de semana do dia 5 de junho, o presidente Bukele de El Salvador fez um anúncio numa transmissão de vídeo para o #BitcoinMiami2021, dizendo que pretendia dar curso legal ao bitcoin no país.
Mas isto só aconteceria, como vimos nos parágrafos anteriores, “se” El Salvador adotasse uma legislação para tornar o bitcoin uma moeda legal.
Ou seja, se fosse aprovada uma legislação para reconhecer o bitcoin como moeda legal, ele se tornaria “dinheiro” do ponto de vista jurídico.
Até então, esse anúncio do Bukele significava apenas seu apoio, sua inclinação ao bitcoin como curso forçado.
Pois bem, antes que todos pudessem entender a amplitude da declaração do Presidente Bukele, ontem o mundo se surpreendeu com uma nova notícia.
Após 12 anos, El Salvador torna-se o primeiro país a elevar o bitcoin ao status de “legal tender”
Em 9 de junho de 2021, com 62 votos, a Assembléia legislativa de El Salvador aprovou a Lei Bitcoin, tornando-o moeda de circulação legal.
Con 62 votos, el pleno legislativo aprueba la #LeyBitcoin con la que El Salvador adopta el #Bitcoin como moneda de circulación legal.
¡#LaNuevaAsamblea sigue haciendo historia! pic.twitter.com/Ur9OQzPvYI
— Asamblea Legislativa (@AsambleaSV) June 9, 2021
Mas o que levou El Salvador a tomar esta decisão?
Dar ao bitcoin o status de curso legal é um salto que pode ajudar países como El Salvador a mudar de uma economia predominantemente baseada em dinheiro para uma economia digital inovadora, inclusiva e transparente, na qual sua conta bancária é seu próprio telefone.
E isto é especialmente significativo para El Salvador, onde cerca de 70% das pessoas não têm conta em banco ou cartão de crédito.
Além disso, as remessas representam mais de 20% do PIB de El Salvador, e os serviços podem cobrar 10% ou mais em taxas para transferências internacionais que levam dias para chegar e devem ser coletadas em um local físico (Fonte: BIS).
Desafios e possibilidades
Sem dúvida, a aprovação de uma legislação em El Salvador tem uma importância impar:
O bitcoin acaba de ganhar um status especial nos sistemas bancários em todo o mundo. Os bancos provavelmente o tratarão como qualquer outra moeda.
Dito isto, merece destaque a impressionante velocidade, timing e sucesso da aprovação da iniciativa do Presidente de El Salvador.
Isto porque, já existiram outros movimentos neste sentido que falharam….
Não é um caminho fácil aprovar este tipo de legislação. Há pressão política e setores que sempre tentarão manter o status quo (situação atual) simplesmente porque ganham com isto (seja como intermediários, seja cobrando altas taxas de transação, etc.).
Além dos aspectos políticos, em alguns lugares, há também desafios legais.
Em 2018, houve um movimento forte em Wyoming para se elevar o bitcoin à categoria de “legal tender”. Tal iniciativa esbarrou, todavia, num desafio de peso: transformar qualquer coisa em curso legal nos EUA exige emendar a Constituição americana.
Outro ponto significativo sobre o movimento de El Salvador é que ele não tem qualquer relação com o preço do bitcoin, mas com seu real valor (como já comentamos em outro artigo desta coluna). Diz respeito à tecnologia subjacente do bitcoin capacitando cidadãos comuns, aliada à eficiência de pagamento da Lightning Network.
E se você quiser testar como funciona a Lightning Network, uma solução para melhorar a escalabilidade e baratear os custos com micropagamentos em bitcoin, visite a cafeteria Starblocks e experimente um expresso Coin Panna ou um Blockaccino. Comento esta experiência em detalhes no meu último livro.
Será que outros seguirão o exemplo de El Salvador? Teremos mais países anunciando o bitcoin como legal tender? Qual será o próximo país?
Pense nisto até nosso próximo encontro.
Nos vemos em breve!
No curso “Decifrando as Criptomoedas” da EXAME Academy, Nicholas Sacchi, mergulha no universo de criptoativos, com o objetivo de desmistificar e trazer clareza sobre o seu funcionamento. Confira.