À medida que o ‘julgamento do século do Bitcoin’ avança, única certeza é que Craig Wright não é Satoshi Nakamoto
Diante de uma profusão de provas inconclusivas e contradições, julgamento de Craig Wright mostra-se uma disputa particular pela posse de algo inacessível: os US$ 60 bilhões em Bitcoins minerados pela entidade secreta que criou a criptomoeda.
Os grandes julgamentos da história costumam despertar o interesse do público em geral por guardarem semelhança com peças teatrais. Duas versões para uma única história cujo veredito é o grande final, definindo a posteriori quem são os heróis e os vilões a partir de uma combinação híbrida de fatos e ficções.
A disputa entre Ira Kleiman e Craig Wright parte do pressuposto de que o cientista da computação australiano e criador do Bitcoin SV é Satoshi Nakamoto. Mas há um porém: ele não teria sido o único responsável pela criação do Bitcoin (BTC). Wright teria tido o auxílio indispensável de David Kleiman, o falecido irmão de Ira.
A tênue possibilidade de que Satoshi fosse finalmente personificado fez com que o evento tenha sido chamado de “o julgamento do século do Bitcoin”. Mas à medida que o a disputa chega à terceira semana, fica cada vez mais claro que tudo não passa de uma grande farsa, pois o que está em jogo não é a real identidade de Satoshi, mas sim os mais de US$ 60 bilhões em Bitcoin que teriam sido minerados pelo inventor da criptomoeda. Algo que independentemente da decisão do júri, ao que tudo indica, permanecerá inacessível.
Embora afirme ser o criador do Bitcoin desde 2016, Wright jamais foi capaz de apresentar a prova definitiva do fato: a capacidade de acessar e movimentar os Bitcoins minerados por Satoshi que agora são alvo de disputa.
Isso não impede que o teatro continue, mesmo que esteja claro que o herói seguirá sendo o misterioso Satoshi e os vilões, aqueles que lutam por algo que são incapazes de provar que lhes pertence.
O julgamento
Até agora, acusação e defesa apresentaram em juízo uma profusão de provas inconclusivas, muitas das quais teriam sido forjadas. Tal suspeita é reforçada pelas inúmeras contradições levantadas pelos depoimentos dos principais interessados no caso e de suas testemunhas.
Em diversas ocasiões, Wright afirmou que foi ele, sozinho, quem escreveu o white paper do Bitcoin. Agora, diante do tribunal, apresentou uma nova versão. Ele reafirmou que escreveu o famoso documento sozinho, mas teria pedido ajuda a David Kleiman para editá-lo. “Se fosse um artigo de 60 páginas cheio de academicismos, ninguém o leria”, justificou.
A tese da acusação postula que os dois amigos eram sócios de uma empresa chamada W&K Info Defense Research, LLC, a qual foi utilizada para “desenvolver” o projeto e para minerar os primeiros Bitcoins da história.
Em seu depoimento, Wright afirmou que nunca se envolveu diretamente com a empresa. Na verdade, a parceira de Kleiman na W&K teria sido a sua ex-mulher, Lynn Wright. Porém, diversos documentos da empresa contam com a sua assinatura sob a chancela de diretor, representante e acionista da W&K
Apesar de não ter envolvimento com a empresa, Wright teria oferecido um emprego a Ira Kleiman quando surgiram os primeiros desacordos entre os dois sobre os termos da parceria entre ele e David. A oferta teria sido de US$ 12 milhões, mas Ira a recusou, preferindo “despojá-lo e saqueá-lo” ao invés de trabalhar para ele.
A acusão apresentou provas de que fora Wright quem havia saqueado a propriedade intelectual registrada em nome da W&K para excluir Ira Kleiman de quaisquer possíveis benefícios futuros, caso a parte que coubesse ao seu falecido irmão lhe fosse concedida.
De fato, em 2014, Wright entrou com um processo contra a W&K, reclamando a propriedade intelectual registrada em nome da empresa. A decisão favorável da Justiça na ocasião permitiu que a PI fosse transferida para outra empresa controlada por Wright.
Mais contradições vieram à tona quando Wright foi questionado sobre a participação de David na mineração dos primeiros Bitcoins. O acusado disse tê-los minerado sozinho, pois David estava no hospital na época. Em face à negativa, o advogado de acusação apresentou mensagens do aplicativo Slack em que Wright afirmava o contrário.
A acusação seguiu apresentando evidências de que os dois eram parceiros no projeto Bitcoin para provar que ambos tiveram participação equivalente em sua criação. Inúmeras mensagens de email mostram Wright se referindo a David como sócio.
Tudo mudou quando o parceiro morreu. Ali ele teria visto uma oportunidade de tomar exculsivamente para si o feito de ter inventado o Bitcoin – e as moedas que ambos mineraram juntos.
Contra tais fatos e afirmações, Wright limitou-se a negá-los com alegações de que foi hackeado e mal interpretado. Por fim, disse que havia dado uma dimensão maior ao papel de David Kleiman na “criação” do Bitcoin do que a que de fato ele merecia, pois queria que o amigo morto não fosse esquecido.
Com lágrimas nos olhos, em 9 de novembro ele afirmou perante o júri: “eu exagerei nas referências a David porque ninguém mais se lembrava dele, e ele foi a pessoa mais importante da minha vida por muitos anos.”
Falsificações
Novas acusações de falsificações de assinaturas e de documentos vieram à tona no tribunal. Wright já fora acusado de falsificar documentos, incluindo a edição e alteração de datas de e-mails e mensagens eletrônicas, para comprovar a alegação de que é o criador do Bitcoin.
Agora, uma testemunha afirmou que ele forjou documentos de um aplicativo de mensagens chamado Bitmessage para rejeitar a tese da parceria com Kleiman. Além disso, Ira Kleiman o acusa de ter falsificado a assinatura de David em diversos documentos, inclusive naquele em que os direitos do irmão sobre a W&K foram repassados para Wright.
Enquanto a peça judicial não entra em seu ato final, não restam dúvidas de que Wright falhará novamente em provar que é o inventor do Bitcoin. Mesmo que nos últimos dias haja surgido um vídeo em que uma testemunha – que não foi arrolada pela defesa do cientista da computação – afirma que Wright “certamente” é Satoshi Nakamoto.
Trata-se de Ryan X Charles, um físico e desenvolvedor do Bitcoin SV (BSC), um fork do Bitcoin Cash criado por Wright. Não é a primeira vez Charles faz essa afirmação. Agora, ele afirma ter sido motivado pelo julgamento em curso.
Sua convicção se baseia no fato de que Gavin Andresen, um dos principais interlocutores de Satoshi Nakamoto na fase inicial de desenvolvimento do Bitcoin, afirmara, ainda em 2016, estar convencido de que Wright era de fato o criador da criptomoeda.
Seria aceitável se Andresen não tivesse voltado atrás e rejeitado a tese, conforme noticiou o Cointelegraph Brasil à época. Ou seja, tanto Craig Wright quanto Ira Kleiman parecem estar errados – e nesse caso não há nada que a Justiça possa fazer capaz de ir além do reino da ficção.
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