365 dias antes da queda: como SBF foi de herói a vilão no ano mais terrível da história das criptomoedas

Em janeiro de 2022, a fortuna de SBF estava avaliada mais de US$ 20 bilhões, mas bastou o vazamento de um balanço patrimonial da Alameda Research mostrando que as finanças do fundo de hedge não estavam tão saudáveis como se supunha para que o seu império desmoronasse.

Ao mesmo tempo em que Sam Bankman-Fried (SBF) se despedia das Bahamas sob custódia de funcionários do Departamento Federal de Investigações dos EUA (FBI) foi divulgada a notícia de que dois de seus antigos fiéis escudeiros na FTX e na Alameda, respectivamente Gary Wang e Caroline Ellison, voltaram-se contra ele para minimizar eventuais penas pelos diversos crimes pelos quais são acusados. 

A queda do império de SBF tornou-se o evento central de um inverno cripto marcado por colapsos e falências monumentais, muito em função da imagem construída pelo ex-jovem bilionário: um empresário bem sucedido em uma indústria de tecnologias emergentes, com conexões nos altos escalões de Washington, a um passo de tornar-se a própria personificação desta indústria ao assumir a liderança para negociar e aprovar um marco regulatório favorável aos seus próprios negócios.

Quando surgiram as primeiras evidências de que nem tudo era como parecia no império construído por SBF e um grupo restrito de jovens supostamente geniais, mas que na verdade revelaram-se “grosseiramente inexperientes e pouco sofisticados”, por dentro o castelo de tokens ilíquidos utilizados em operações de alavancagem erguido durante o ciclo de alta de 2021 já estava desmoronando.

No entanto, recuando um pouco mais atrás, há um ano para ser mais específico, SBF e o consórcio FTX-Alameda pareciam muito próximos de conquistar o que quer que aqueles jovens estranhos movidos a anfetaminas e ideais de altruísmo efetivo fossem capazes de desejar.

A seguir, o Cointelegraph Brasil faz uma retrospectiva dos últimos 12 meses da vida de SBF e de sua turma à frente da segunda maior exchange global em volume negociado e do fundo de hedge que dera origem ao império, e que também acabou sendo responsável por sua fulminante derrocada.

Dezembro de 2021

Depois de ter Sam Bankman-Fried como uma das principais personalidades da edição 2021, a prestigiosa lista Forbes 30 Under 30 elegeu seus dois colaboradores mais próximos para a sua edição de 2022: os co-CEOs da Alameda Research Sam Trabucco e Caroline Ellison.

Apesar do nome enganoso, a lista de jovens personalidades mais brilhantes e poderosas de até 30 anos de idade reúne 600 nomes em 20 categorias diferentes, cabendo à dupla de jovens executivos da Alameda destaque junto a outros nomes da indústria de criptomoedas, como o fundador do marketplace de tokens não fungíveis (NFTs) OpenSea, Alex Atallah.

Na ocasião, Trabucco comentou que se tratava de “algo divertido” fazer parte da lista.

isso é meio divertido

— Sam Trabucco (@AlamedaTrabucco)

Enquanto isso, em 8 de dezembro, SBF participou de uma audiência no Congresso dos EUA intitulada “Ativos Digitais e o Futuro das Finanças: Entendendo os Desafios e Benefícios da Inovação Financeira nos Estados Unidos”.

Como um dos principais porta-vozes da indústria em Washington, SBF publicara alguns dias antes do evento uma proposta em 10 tópicos com sugestões aos seus pares e aos reguladores intitulada “Princípios fundamentais para a regulamentação do mercado.”

Em um dos trechos do documento, a exchange propõe a aprovação de uma regulação que exija maior transparência dos custodiantes de criptoativos, argumentando que as plataformas de negociação devem primar por “dar visibilidade” aos seus usuários sobre como pretendem lidar com questões relacionadas a fraudes e roubos.

Janeiro de 2022

Ao mesmo tempo que a queda do mercado de criptomoedas dava mostras de que as máximas históricas de novembro de 2021 tinham marcado o ápice do ciclo de alta e uma nova fase estava começando, nada parecia abalar os negócios de SBF.

No fim do mês, o braço norte-americano da FTX levantou US$ 400 milhões em uma rodada de financiamento que contou com aportes de investidores como o SoftBank Group e a Temasek e elevou seu valor de mercado para US$ 8 bilhões. Enquanto a FTX internacional levantou um valor equivalente, alcançando um valor de mercado de US$ 32 bilhões à época.

Fevereiro de 2022

A partir de um acordo que havia sido fechado em outubro de 2021, a FTX foi uma das empresas de criptomoedas que estrelou uma campanha publicitária em um dos espaços mais caros da televisão norte-americana, ao lado da Coinbase, da eToro e da Crypto.com: o intervalo do Super Bowl.

Não se sabe exatamente qual foi o valor total gasto por SBF para adquirir o espaço e produzir o filme publicitário estrelado pelo comediante Larry David, estrela da popular série Seinfeld.

O anúncio mostrava David descartando novas tecnologias recém inventadas ao longo da história. Desde a invenção da roda até a eletricidade. Na peça, o comediante ainda se opõe à Declaração de Independência dos Estados Unidos, mostra ceticismo sobre a chegada do homem à lua e, por fim, rejeita as criptomoedas ao dispensar o aplicativo da FTX. Então, o comercial se dirige diretamente aos telespectadores com os seguintes dizeres: 

“Não seja como Larry. Não perca o próximo grande acontecimento.”

“Não há evento maior e mais popular para compartilhar uma mensagem como essa do que o Super Bowl”, disse SBF por ocasião do fechamento do contrato. A FTX ainda distribuiu 7,54 Bitcoins gratuitamente durante o evento – o equivalente a aproximadamente US$ 350.000 na época.

Abril de 2022

Em abril de 2022, SBF levantou uma enorme bandeira vermelha sobre a sua visão da indústria de criptoativos e sobre a forma como lida com os seus próprios negócios em uma entrevista ao podcast Odd Lots, da Bloomberg.

Na ocasião, SBF explicou de forma didática no que consistem operações de yield farming. Em um determinado momento, foi interrompico pelo entrevistador Matt Levine, que sugeriu que a lógica da criação e da distribuição de criptoativos é muito similar à de um esquema de pirâmide financeira. Sem rodeios, SBF concordou:

“Você pode descrever dessa forma. Por exemplo, em cinco minutos e com uma conexão à Internet, você poderia criar uma caixa e um token. Deveria valer US$ 180 ou algo assim em termos de valor de mercado, você sabe, em função do esforço que você colocou nisso. No mundo em que vivemos, se você fizer isso, todo mundo vai ficar tipo: ‘Ooh, o token de caixa. Talvez seja legal. Se você comprar um token da caixa’. O token aparecerá no Twitter e depois disso terá um valor de mercado de US$ 20 milhões. E, claro, uma coisa que você pode fazer é deixar o float bem baixo e sei lá, talvez ainda não tenham ido para US$ 20 milhões… Reconheço que não está totalmente claro que essa coisa deveria ter valor de mercado, mas, empiricamente, afirmo que teria valor de mercado.”

Por se tratar de SBF, o jovem bilionário e enfant-terrible da indústria, foi dada licença e aval para que ele assim se expressasse sem maiores consequências imediatas. Mais tarde, verificou-se que ele era especialista nesse tipo de operação. Algo que sem muito esforço muitos poderiam ter denunciado na época. De qualquer forma, provavelmente não teria havido efeitos práticos.

Maio de 2022

Pouco mais de uma semana depois que SBF desnudou a estratégia da grande maioria dos projetos de criptomoedas em circulação no mercado, a teoria deixou clara as suas falhas práticas.

A falha do mecanismo de estabilidade de preços da stablecoin algorítmica TerraUSD (UST), baseado em um esquema de emissão e queima do LUNA em operações de arbitragem, eliminou US$ 40 bilhões do mercado de criptomoedas em um espaço de pouco mais de uma semana.

Apesar das reservas em Bitcoin acumuladas às pressas à medida que os riscos de uma eventual perda de paridade do UST com o dólar cresciam despertando desconfiança no mercado, o UST foi de US$ 1,00 a US$ 0,13 em poucos dias e arrastou todo o mercado consigo.

Em pouco tempo o contágio se espalhou entre diversas entidades da indústria que possuíam largas posições em UST para beneficiarem-se dos juros de quase 20% anuais pagos para investidores no protocolo de finanças descentralizadas (DeFi) Anchor.

Muitas das empresas que vieram a quebrar por causa do Terra tinham exposição ao UST de três formas não excludentes, o que significa que algumas sofreram perdas em todos eles.

Empresas que haviam investido capital no Terra, recebendo participações sob a forma de UST e/ou LUNA; empresas que abriram grandes posições no no Anchor por causa de seu programa de renda passiva muito superior à média do mercado; ou empresas e indivíduos que concederam empréstimos sub-colateralizados, ou mesmo sem nenhum tipo de garantia, a empresas que investiram no Terra ou tinham grandes posições alavancadas em UST ou LUNA.

As próximas peças a cair sob o efeito dominó do Terra foram a plataforma de empréstimos Celsius e o fundo de investimento Three Arrows Capital (3AC). Outras sucumbiram depois em um processo de agonia mais lenta, como a Voyager Digital e a BlockFi.

Aparentemente, do alto da fortaleza de SBF, a FTX e a Alameda não haviam sido contagiadas pelo colapso do Terra. O tempo, porém, revelaria o contrário.

De qualquer forma, para consumo externo a grande preocupação de SBF após o evento era impedir o retorno de Trump à Casa Branca e descartar o Bitcoin como um meio de pagamento efetivo devido ao seu mecanismo de consenso baseado em Prova-de-Trabalho (PoW), supostamente inferior a blockchains alternativas baseadas em Prova-de-Participação (PoS).

Junho de 2022

À medida que o contágio do colapso do Terra se espalhava afetando diversas empresas e provocando novas quedas nos preços das criptomoedas no mercado mais amplo, SBF começou a alimentar a lenda do cavaleiro branco, mostrando-se disposto a mitigar a quebradeira que ameaçava a indústria.

Em uma declaração à imprensa, o executivo disse que a Alameda e a FTX tinham “a responsabilidade de considerar seriamente intervir, mesmo que com prejuízo para nossas operações, para conter o contágio”:

“Mesmo se não fomos nós que causamos isso, ou não estávamos envolvidos nisso. Acho que é isso que é saudável para o ecossistema e quero fazer o que for possível ajudá-lo a crescer e prosperar.”

O primeiro socorro foi oferecido à Voyager Digital sob a forma de um empréstimo de 200 milhões de USD Coin (USDC) e uma “linha de crédito rotativo” de 15.000 Bitcoin (BTC) no valor de US$ 298,9 milhões na cotação da época.

Também em junho, a FTX ofereceu à plataforma de empréstimos BlockFi uma linha de crédito de US$ 250 milhões, com direito a um compromisso de compra a um preço variável de até US$ 240 milhões com base em gatilhos de performance.

 Julho de 2022

Em julho, surgiram as primeiras evidências de que o suporte oferecido pela FTX e pela Alameda às empresas em crise na verdade baseava-se em um movimento de auto-preservação e minimização de danos.

Documentos encaminhados ao tribunal em função do pedido de falência de Capítulo 11 da Voyager Digital revelaram que os laços entre a Alameda e o credor de criptomoedas eram pré-existentes. A Alameda Research era ao mesmo tempo acionista e devedora da Voyager Digital, com US$ 377 milhões de dívidas em aberto.

SBF também considerou fazer uma proposta pela Celsius, mas acabou recuando ao descobrir que o rombo da empresa somava US$ 1,2 bilhão.

No final, auxiliados ou não pela FTX e pela Alameda, as três empresas acabaram entrando com pedidos de proteção contra falência de Capítulo 11.

Isso porque, a essa altura, a FTX também estava insolvente. Em parte pelo mesmo motivo que 3AC, Celsius, BlockFi e Voyager Digital. Mais tarde, dados on-chain vieram a revelar que a Alameda Research sofreu grandes perdas quando o Terra entrou em colapso.

Para cobrir esse prejuízo, os fundos dos clientes da FTX foram transferidos para a Alameda. De acordo com a acusação apresentada em 13 de dezembro e atualizada nesta quinta-feira, 22, pela Comissão de Negociação de Futuros de Commodities (CFTC), uma conta de cliente falsa foi criada para ocultar os passivos da Alameda:

“Pelo menos em parte para remediar o risco de que o grande passivo da Alameda fosse descoberto, sob as ordens de Bankman-Fried, os executivos da FTX realocaram os aproximadamente US$ 8 bilhões em passivos da Alameda para uma conta de cliente nos sistemas da FTX, a qual Bankman-Fried mais tarde chamaria de ‘conta do nosso amigo Coreano’ ou ‘a conta do estranho Coreano'”.

Agosto de 2022

Em agosto, Sam Trabucco renunciou ao comando da Alameda, deixando-a sob a liderança exclusiva de Caroline Ellison. Dias depois foi anunciado que a FTX Ventures, o braço de investimento da FTX, absorveria as operações de capital de risco da Alameda – algo que na prática já vinha acontecendo há algum tempo e seria uma das principais razões para a falência de ambas as empresas.

Setembro de 2022

Publicamente, SBF mantinha sua postura de guardião da indústria, ocultando os problemas internos da estrutura empresarial da FTX. Em setembro, a CNBC divulgou informações de que a empresa estava negociando uma nova rodada de financiamento junto a investidores, que poderia chegar a US$ 1 bilhão. O objetivo seria socorrer empresas em crise através de novas aquisições.

Embora não tenha sido confirmado por SBF, no final do mês a FTX.US, braço norte-americano autônomo do império do executivo, venceu o leilão dos ativos da Voyager Digital com uma oferta de aproximadamente US$ 1,4 bilhão.

Hoje, após um leilão competitivo destinado a devolver o valor máximo aos clientes, a @FTX_Official US foi selecionada como a maior e melhor licitante. Comunicado de imprensa linkado abaixo. Mais informações sobre o que este acordo significa para os clientes a seguir.

— Voyager (@investvoyager)

A aquisição ainda teria que ser aprovada pelo Tribunal de Falências dos EUA para o Distrito Sul de Nova York, algo que nunca chegou a ocorrer em função dos acontecimentos que viriam a seguir.

Outubro de 2022

A última grande jogada pública de SBF antes da eclosão da crise que levaria à queda do seu império se deu no campo regulatório. Em 19 de outubro, o executivo divulgou através do Twitter um documento em que delineava alguns padrões que, segundo ele, a indústria deveria seguir para direcionar a regulação nos EUA em nome da proteção aos investidores.

Intitulado “Possíveis Padrões para a Indústria de Ativos Digitais”, o documento foi bastante criticado por abrir mão de alguns princípios fundamentais das criptomoedas e da tecnologia blockchain, especialmente aqueles que dizem respeito à censura de entidades e transações.

Nele, SBF sugeria que os próprios protocolos deveriam criar um padrão de conformidade regulatória, sujeitando-se a respeitar e a obedecer às deliberações de órgãos governamentais e autoridades financeiras como forma de antecipar o marco regulatório que estava em discussão nos EUA e em outras jurisdições, inclusive no Brasil.

Entre outras coisas, SBF defendia a criação de listas negras para proibir transferências e congelar fundos associados a endereços sancionados ou vinculados a crimes financeiros.

“Deve haver uma lista on-chain dos endereços sancionados, atualizada em tempo real, mantida pelo OFAC (Agência de Controle de Ativos Estrangeiros dos EUA) ou por outra entidade responsável”, escreveu SBF, referindo-se justamente à agência que sancionou endereços vinculados ao protocolo de privacidade Tornado Cash (TORN) em agosto.

SBF defendeu a proposta justificando que ao não impor restrições a maus atores a indústria se tornaria instrumento preferencial para perpetração de crimes financeiros. Ao não implementar determinados padrões pode fazer com que os reguladores proponham regras ainda mais restritivas, disse. A ideia da “lista negra” é uma maneira de garantir o equilíbrio entre os extremos, afirmou SBF nas discussões que se seguiram à divulgação do documento.

A reação da comunidade cripto foi unanimemente negativa e gerou acusações de que a proposta de SBF tinha como objetivo fundamental beneficiar as suas empresas e os seus negócios, como comentou  o anônimo fundador da plataforma DeFi Pulse, conhecido apenas como Scott, no Twitter:

“A FTX está gastando dinheiro para aprovar uma lei no Congresso que pode forçar os protocolos DeFi a operar como exchanges centralizadas. A proposta se chama Lei de Proteção ao Consumidor de Commodities Digitais. Um nome melhor seria Lei de Proteção à FTX de Commodities Digitais.”

Um debate promovido pela Bankless em 28 de outubro opôs SBF e Erik Voorhees, CEO da ShapeShift, um membro da velha guarda da comunidade cripto. Em mais de duas horas, ambos defenderam suas ideias sobre as diretrizes mais apropriadas para regulação da indústria.

Extremamente pálido e com dificuldade para articular ideias de forma coerente em determinados momentos da conversação, SBF levantou suspeitas entre os espectadores de que poderia haver algo de errado no seu império.

Ninguém, no entanto, seria capaz de imaginar àquela altura, que em duas semanas a FTX e a Alameda estariam dando entrada a um pedido de falência. Menos ainda que dois meses depois, SBF estaria chegando aos EUA sob custódia do FBI para responder por oito acusações criminais, incluindo fraude eletrônica, conspiração para cometer fraude eletrônica e violação às leis de financiamento de campanhas eleitorais, que podem render a ele uma condenação de até 115 anos de prisão.

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