Viciados no trade: obsessão pelo mercado de criptomoedas pode causar prejuízos à saúde mental – e não apenas financeiros
Alta do mercado e isolamento social fizeram com que o diagnóstico de vício em criptomoedas se tornasse cada vez mais comum desde o início de 2020.
Todo vício tem um ciclo comum. Tudo começa com lances ocasionais e recompensas frequentes, as quais alimentam um desejo por mais e mais dopamina para manter a sensação de prazer e o êxtase permanente decorrente das grandes vitórias.
Até que vem os primeiros reveses causando raiva e frustração e desencadeiam uma necessidade obsessiva de reviver aqueles momentos artificialmente gloriosos. A insistência abre caminho para derrotas recorrentes e a perda da autoestima, que resultam em isolamento e retração. Eventualmente, o desespero pode levar a pessoa a cometer atos ilícitos, autodestrutivos e, em casos extremos, até mesmo ao suicídio.
A alta volatilidade do mercado de criptomoedas, com seus altos e baixos constantes e a promessa implícita de enriquecimento quase instantâneo, pode ser extremamente viciante, afirma o teraupeta Tony Marini, especialista em tratamento de transtornos relacionados à negociação de criptoativos, em uma reportagem do site Decrypt:
“Se você disser para alguém que faz trade de criptomoedas, ‘então você está jogando ocasionalmente’, eles vão dizer ‘não, eu não estou’. Então, tire a palavra jogo e diga ‘ocasionalmente negociando’ e estará tudo ok, mas o padrão é exatamente o mesmo.”
Marini é o terapeuta-chefe do “Castle Craig”. Situado na Escócia, em uma área rural a 40 km de Edimburgo, a capital do país, o local ficou conhecido como “Castelo Cripto” por ser a primeira clínica do mundo a oferecer cuidados especiais para “viciados” em negociação de criptomoedas.
Atualmente, nove dos 50 pacientes internados no “Castelo Cripto” estão em busca de tratamento contra a compulsão pelo trade.Por enquanto, o transtorno é classificado como um subtipo de vício em day-trading, semelhante à compulsão por jogos de azar. Em geral, é potencializado pelo vício em álcool e drogas e, portanto, o tratamento é bastante similar ao de junkies e alcoólatras.
No “Castelo Cripto”, Marini trata dos seus clientes baseando-se no Modelo de Minnesota, um programa constituído de 12 etapas que é muito utilizado em grupos de Alcoólatras Anônimos (AA), e é comprovadamente eficiente para debelar diversos vícios.
Marini chama atenção para a construção de um ideal de riqueza e sucesso alardeado pelos adeptos das criptomoedas e pela mídia especializada que não condiz com a realidade da maioria dos investidores. E acrescenta:
“Não se ouve falar das pessoas que perderam muito dinheiro. Essas pessoas ficam envergonhadas, se sentem culpadas. Não querem falar sobre isso. Elas se sentem estúpidos. ”
Embora não haja números exclusivos sobre os traders de criptomoedas, pesquisas já provaram que em outros mercados os perdedores compõem a grande maioria. Enquanto eles estão se afundando cada vez mais no vermelho, endividados diante da liquidação de seus ativos e a pulverização do seu patrimônio, alguns poucos podem ostentar sua riqueza baseada em um histórico de velas verdes e lucros exponenciais.
Marini menciona ainda uma pesquisa que mostra que quase 40% das pessoas viciadas em jogos de azar já pensaram em suicídio e 33% atentou de fato contra a própria vida. Segundo o terapeuta, três vezes mais pessoas se suicidam como resultado de prejuízos em jogos de azar do que de qualquer outro vício.
No caso das criptomoedas, embora não existam pesquisas definitivas, os efeitos podem ser ainda mais viciantes e, consequentemente, mais devastadores.
O mercado de criptomoedas é diferente do mercado de ações, pois mantém-se em operação 24 horas por dia, 7 dias por semana, e a quantidade de informações disponíveis nas redes sociais e na mídia especializada é enorme. Por vezes, os analistas apresentam opiniões divergentes sobre o sentimento geral do mercado, aumentando a ansiedade e reforçando a obsessão natural dos comportamentos compulsivos.
A volatilidade do mercado condiciona os traders a um estado semi-hipnótico. Eles passam dias, e às vezes as noites também, analisando a ação de preço e os padrões dos gráficos de diferentes criptoativos. Obviamente, isso causa prejuízos à saúde mental. Foi o caso de Steven Elphinstone, um dos clientes de Marini no “Castelo Cripto”.
O britânico de 49 anos abandonou o trabalho depois de ter ter comprado, lucrado – e por fim perdido – centenas de Bitcoins, conforme revelou à reportagem. O caso dele é um daqueles típicos em que o vício em álcool e drogas potencializa a compulsão pelo mercado de criptoativos.
Ele conta que alimentava sua obsessão por análise gráfica com pitadas de mitologia Viking, numerologia e um coquetel de drogas que incluía maconha, LSD, cogumelos, anfetaminas e quetamina. Com esta última, ele se “autotransportava para dentro dos próprios gráficos”, disse à reportagem com um certo grau de euforia.
Sintomas de vício em criptomoedas
Como avaliar, na prática, se alguém está viciado no trade de criptoativos?
Obviamente, o primeiro sinal é manter-se constantemente aferrado aos movimentos do mercado, deixando de lado outras atividades sociais e de lazer, e até mesmo o próprio trabalho. Pior ainda quando se passa da observação à ação, operando no mercado em busca de retornos instantâneos.
O segundo é um aumento indiscriminado da exposição ao risco sem uma estratégia definida. Por exemplo, investir em protocolos desconhecidos em busca de lucros exponenciais. Ou quando o trader fica obcecado em recuperar as perdas de um investimento mal sucedido através de operações arriscadas em busca de retornos imediatos.
O terceiro sintoma é a busca constante de oportunidades de investimento, mesmo quando não há sinais claros de entrada em um determinado ativo.
Por fim, o mais grave de todos. Quando uma série de perdas abala a saúde financeira do trader a ponto de ele ocultar seus prejuízos da família e das pessoas próximas. Este é um sinal de que ele pode estar a um passo de comprometer também as suas relações sociais e sua vida pode estar entrando em uma espiral descendente rumo à autodestruição.
Qualquer um dos sinais acima indica a necessidade de buscar aconselhamento de um profissional e de se afastar do merdado. Ao menos temporariamente. Mesmo que seja torturante manter-se à margem do trade em um ciclo de alta do mercado.
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