Tokenização: a vingança dos intermediários?
A Máquina da Confiança! Foi assim que a The Economist descreveu o conceito de blockchain lá nos idos de 2015. A capacidade de realizar operações de forma confiável sem que fosse necessário um terceiro (third party) ou um intermediário (middleman) sempre foi um grande atrativo e a grande revolução dessa coisa toda.
Comecemos concordando que o que é executado numa blockchain é confiável, o que significa que a probabilidade de haver uma ação fora das regras estabelecidas é desprezível.
Claro, existem alguns parâmetros a serem respeitados, como o tamanho da rede, por exemplo. O recente ataque de double spending ao Bitcoin Gold comprova, na prática, que redes com relativo baixo número de nós estão mais expostas a problemas.
Nas condições normais, cada registro e cada regra, seja nativa da blockchain (como impedir double spending no Bitcoin) ou especificada em um smart contract (como cobrar o preço certinho por aquele ingresso virtual programado no Ethereum), tem sua consistência e integridade garantidas.
Tudo isso sem que se precise lançar mão do famigerado middleman ou qualquer processo desajeitado e ineficiente de reconciliação de dados entre os participantes.
É possível não confiar em ninguém?
A questão é como estas informações vão parar lá na blockchain. Ironicamente, a parte fraca dessa cadeia de confiança é quem insere a informação. Num projeto como o Everledger, construído sobre o Hyperledger, que objetiva evitar a comercialização dos ditos diamantes de sangue, alguém precisa registar o diamante na blockchain.
Tokenizá-los, como se diz… É aí que mora o perigo. Quem registra? Por que confiar nesse personagem?
Observe que, quando a blockchain lida com elementos que são nativos da sua própria estrutura, esse problema simplesmente não existe. O Bitcoin, por exemplo, já nasce na blockchain e é transferido sempre por alguém que o possui, ambas as operações garantidas pelo próprio algoritmo.
De forma mais geral, toda vez que uma informação precisa ser atualizada sobre um ativo ou qualquer outra coisa que foi tokenizada, é preciso que o responsável pelo registro seja confiável. Isso dá um certo frio na espinha, pois parece quebrar o paradigma da trustless trust que a blockchain nos trouxe.
Essa discussão foi exatamente o tema de um dos mais de cem artigos apresentados na IEEE International Blockchain Conference, ocorrido em Halifax, no Canadá, entre julho e agosto. Trata-se de um trabalho bastante conceitual, com teoremas e provas matemáticas, mas que versa sobre um ponto bem relevante e, no fim das contas, prático.
Segundo seus autores, ao aplicar os critérios desenvolvidos a diversos casos de uso comumente citados, conclui-se que estes não podem ser implementados sem que seja necessário confiar em algum terceiro.
Não espera molhar o bico…
Embora exista esse calcanhar de Aquiles, não há motivo para desânimo.
Primeiramente, muitos modelos de negócio realmente revolucionários simplesmente não têm esse problema. É o caso do próprio Bitcoin, do Ethereum e de boa parte das dezenas de soluções que oferecem serviços nativamente digitais.
E não é só essa casta puríssima que se salva. Muitos produtos financeiros e contratos de forma geral podem ser criados na própria blockchain, através de um smart contract entre as partes envolvidas, o que os torna nativos digitais e, portanto, dignos de confiança total.
Mesmo no caso de tokenização de produtos do mundo físico, como títulos de propriedade, embora a propriedade tokenizada não seja nativa digital, a definição de quem é o dono é totalmente digital. Basta que a sociedade concorde que é lá na blockchain, e não num cartório qualquer, que está a informação que vale que a coisa funciona bem.
Vários outros casos existem e é claro que há bem mais que cinquenta tons de cinza entre o céu claríssimo do Bitcoin e a escuridão dos casos em que o terceiro ou o intermediário não são dispensáveis.
Pra frente é que se anda
Agora, sejamos sinceros: se o mundo perfeito e totalmente confiável propagado por um certo hype sobre as blockchains não for alcançável em todos os casos, isso não deveria surpreender ninguém. Os sonhos existem para nos mover e apontar direções, mas o que realmente importa, no final das contas, é melhorar o mundo real, coisa que as blockchains têm enorme potencial para fazer.
Nesse mundinho imperfeito em que vivemos, há inúmeros processos envolvendo toneladas de papel e de trabalho manual, sujeitos a erros e fraudes. E agregar valor nisso aí já ajuda a evoluir o planeta, e muito! Assim, na dureza da realidade, blockchains têm um valor gigantesco para agregar, mesmo que não se atacasse a questão citada.
Se não se atacasse… Mas, é claro que tem gente se debruçando sobre isso.
Para melhorar um tecnologia, mais tecnologia
IoT com blockchain foi tema de 30% dos artigos do IEEE Blockchain. Não era de se espantar, dado que a sinergia entre ambas já é cantada em verso em prosa há um tempo. E, se blockchain ajuda a resolver problemas de identificação e segurança para arquiteturas IoT (7% dos artigos), IoT pode auxiliar no aumento da confiança do processo de tokenização, com as chamadas crypto-anchors.
A ideia é verdadeiramente interessante. Se comparados a digitadores humanos, dispositivos de IoT são bastante confiáveis na tokenização de um ativo do mundo físico. Assim, por exemplo, um dispositivo de IoT integrado a um produto seria o principal responsável por inserir informações sobre esse item numa blockchain que monitora o seu supply chain.
Uma outra possibilidade é acrescentar inteligência artificial a um outro dispositivo que monitore a tal cadeia de suprimentos, reconhecendo-os e registrando informações sobre estes de forma mais confiável.
Crypto-anchors seriam mesmo como âncoras para a confiança que a blockchain proporciona.
A princípio, crypto-anchors não são uma solução para se aplicar em todos os casos, mas o conceito abre toda uma nova gama de possibilidades inexploradas.
Num mercado ainda em desenvolvimento, não param de surgir novos nichos. Quem apostar certo tem enormes chances de ser bastante bem recompensado.
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