Stablecoins lastreadas em real não correm risco perante à CVM, dizem especialistas

Regulador brasileiro não tem motivos para replicar ação da SEC contra o BUSD, avaliam fontes ouvidas pelo Cointelegraph Brasil

O mercado de criptomoedas foi pego de surpresa nesta segunda-feira (13). A Paxos, emissora da stablecoin Binance USD (BUSD), recebeu uma ordem para interromper a criação de novas unidades de BUSD. A decisão foi tomada pela Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos (SEC, na sigla em inglês) e pelo Departamento de Serviços Financeiros de Nova York (NYDFS, na sigla em inglês).

O episódio levantou dúvidas sobre essa movimentação ser possível no Brasil, por parte da Comissão de Valores Mobiliários, contra emissoras de stablecoins lastreadas no real. Especialistas ouvidos pelo Cointelegraph Brasil avaliam que esse é um cenário de baixa probabilidade, dada a diferença entre os reguladores.

Ordem repentina

O que motivou a decisão da SEC é um suposto entendimento de que o BUSD é um valor mobiliário sem registro. Até o momento da escrita desta matéria, porém, o regulador estadunidense não se manifestou abertamente sobre esta questão. De qualquer forma, a Paxos acatou ao pedido, e encerrará a emissão da stablecoin a partir do dia 21 de fevereiro.

Para que um ativo seja considerado valor mobiliário nos Estados Unidos, é necessário seu enquadramento em quatro características, previstas pelo teste de Howey. O ativo, então, deve ser: um investimento de dinheiro; de uma empresa comum; com expectativa razoável de lucro; derivado dos esforços de terceiros.

Embora tenha acatado a ordem da SEC, a Paxos se posicionou contrariamente à decisão em um comunicado enviado à imprensa, afirmando não acreditar que o BUSD é um valor mobiliário. “Teremos um engajamento com a equipe da SEC sobre esta questão, e estamos preparados para litigar vigorosamente, caso necessário”, disse a Paxos no comunicado.

Valor mobiliário ou não?

Fernando Henriques, da área de Novos Negócios da Bitypreço, concorda que o BUSD não se enquadra na definição de valor mobiliário. “Uma das exigências do teste de Howey é que o investidor tenha expectativa de lucros. No caso do BUSD, que é pareado ao preço do dólar, como alguém dá um dólar, recebe BUSD e espera ter lucro com isso?”

Henriques acrescenta que o cenário mais provável após a venda de uma unidade de BUSD é, na verdade, prejuízo. “Há as taxas de operação que incorrem na venda, ou seja, a expectativa é de custo operacional.” 

A falta de informações por parte do regulador, porém, dificulta o entendimento do caso, acrescenta o membro da área de Novos Negócios da Bitypreço. A SEC possui ampla liberdade para definir as razões por trás de suas ações contra entidades financeiras nos Estados Unidos. Por isso, Henriques avalia que outros fatores podem estar sendo considerados.

Julian Lanzadera, sócio da Transfero, emissora da stablecoin BRZ, também discorda da caracterização do BUSD como valor mobiliário. A justificativa é a mesma de Henriques, quanto à expectativa de remuneração ao adquirir a stablecoin, algo obrigatório pelo teste de Howey.

“Se um participante do mercado, diferente do emissor da stablecoin, individualmente, resolve criar um produto financeiro com direito de remuneração ou participação nos resultados utilizando a stablecoin como ativo base deste produto, este último que deve tomar os cuidados necessários em relação à oferta”, salienta Lanzadera. Nesse caso, completa, há a configuração de valor mobiliário.

Outro ponto de concordância entre Henriques e Lanzadera é a existência de algum outro fator que, possivelmente, faz com que o BUSD seja um valor mobiliário aos olhos da SEC. O sócio da Transfero destaca que o contrato de investimento é apenas um tipo de valor mobiliário sob as leis estadunidenses.

“Este me parece ser um ponto importante, onde o regulador americano possa ter conferido uma nova interpretação, dado que o texto do Securities Act é suficientemente amplo para permitir interpretações extensivas, o que não ocorre no Brasil com a Lei 6.385/76”, acrescenta Lanzadera.

Discussão antiga

O enquadramento de stablecoins dentro da legislação vigente nos Estados Unidos não é uma discussão recente. É o que aponta o advogado Isac Costa, professor do Ibmec e sócio do Warde Advogados.

Stablecoins poderiam ser consideradas derivativos ou commodities, inserindo-se na competência da Comissão de Negociação de Contratos Futuros de Commodities (CFTC, na sigla em inglês), avalia o advogado. “Algumas discussões nesse sentido foram iniciadas, e o mercado cripto prefere a CFTC à SEC. Mas a SEC ganhou protagonismo depois do colapso da FTX e da cruzada empreendida pelo presidente da Comissão, Gary Gensler.”

Nesta segunda-feira, a Bloomberg publicou sobre uma denúncia feita pela Circle, emissora do USD Coin (USDC), contra a Binance em 2022. A empresa alega em sua denúncia que a Binance não praticou a devida gestão do lastro do BUSD, fazendo com que parte do suprimento da stablecoin não tivesse colateral.

Essa é uma questão secundária, mas importante, avalia Isac Costa. Não é possível ter certeza, no entanto, se é esse o motivador por trás da decisão da SEC.

Pode acontecer no Brasil?

As stablecoins lastreadas no real são relativamente pequenas quando comparadas ao valor de mercado das líderes do segmento, como Tether USD (USDT) e USDC. No Brasil, contudo, a stablecoin BRZ movimentou R$ 1,3 bilhão no quatro trimestre de 2022, apontam dados da Receita Federal. O montante fica atrás somente do USDT.

Uma ação da CVM contra stablecoins lastreadas no real, embora tenha um impacto menor em comparação ao caso SEC e BUSD, não deixa de ser algo relevante para o mercado brasileiro. Mas esta é uma possibilidade remota, na visão de Julian Lanzadera, da Transfero.

“A CVM já se manifestou recentemente com o Parecer de Orientação nº 40 e foi clara ao dizer que stablecoins podem ou não ser consideradas valores mobiliários, a depender da essência econômica dos direitos conferidos a seus titulares, bem como da função que assuma ao longo do desempenho do projeto a ele relacionado”, diz Lanzadera.

O sócio da Transfero defende que a essência econômica do BRZ é servir como conector em reais entre o mercado financeiro tradicional e o digital. Através do BRZ, acrescenta, é possível que um investidor brasileiro interaja com protocolos Web3 “usando um ativo referenciado em sua moeda de origem”.

“Isso torna a experiência menos complexa para o usuário que queira explorar a infinidade de possibilidades que o mercado de criptoativos oferece”, avalia Lanzadera. Ele acrescenta que o BRZ não garante seu preço em proporção 1:1 com o real, sendo a proporção regida “puramente por forças de mercado que atuam para manter o equilíbrio”.

Fernando Henriques, da Bitypreço, entende que a postura da CVM no Brasil é bem diferente daquela adotada pela SEC nos Estados Unidos. Isso se deve, em grande parte, pela atuação de Gary Gensler no mercado de criptomoedas estadunidense, que busca ganhar visibilidade para a sua figura através da criação de um cenário de litigância.

“Aqui no Brasil, não temos um personagem assim, não tem esse apetite por litígio. Além disso, há muito diálogo entre a CVM e as empresas do setor”, acrescenta Henriques. Ele afirma ainda que o tamanho do mercado de stablecoins lastreadas no real é pequeno, fazendo com que a CVM busque focar em outras áreas do mercado de criptomoedas, como a recente aprovação para regular os ativos digitais no Brasil.

O advogado Isac Costa também acredita que, por enquanto, o tamanho do mercado de stablecoins lastreadas no real ainda não cria urgência na CVM para cuidar do assunto. Ele avalia que, na maior parte, esses tokens são mais utilizados para facilitar pagamentos.

“Desse modo, ainda não vejo um produto financeiro envolvendo stablecoins lastreadas em real que autorizem a conclusão de que há um benefício econômico em decorrência de terceiro”, conclui Costa.

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