Fonte alternativa de renda ou combinação de trabalho precário com day trade? Especialistas brasileiros debatem games play-to-earn

Analistas brasileiros apresentam visões conflitantes sobre a dinâmica econômica dos jogos play-to-earn.

Durante o ciclo de alta do mercado de criptomoedas em 2021, os jogos em blockchain no modelo play-to-earn tornaram-se uma alternativa real de trabalho para cidadãos de países de economias periféricas em que o mercado de trabalho se caracteriza por relações empregatícias instáveis e baixos salários.

Em agosto do ano passado, jogadores filipinos faziam entre R$ 2.700 e R$ 4.000 mensais em Small Love Potions (SLP), o token de utilidade do Axie Infinity, o game mais popular da indústria de jogos em blockchain. Ao mesmo tempo, havia mais cidadãos filipinos que possuíam uma carteira da Ronin, rede na qual está baseado o Axie Infinity, do que portadores de cartões de crédito. O fenômeno era tamanho que comerciantes locais passaram a aceitar SLP como moeda corrente para compra de bens, mercadorias e serviços.

Menos de um ano depois, com a queda generalizada do mercado de criptomoedas e os desajustes da economia interna do jogo, a ideia de que se possa tirar o sustento cotidiano jogando videogame parece apenas mais uma promessa não realizada para aqueles que entraram no mercado de criptomoedas durante a euforia motivada por sucessivos recordes históricos de preço do Bitcoin (BTC), do Ethereum (ETH) e tantas outras moedas.

Apesar de o mercado de NFTs ter iniciado 2022 aquecido e o próprio Axie Infinity tenha atingido a marca de US$ 4 bilhões movimentados em negociações de tokens não fungíveis no marketplace do jogo, um especialista brasileiro ouvido em uma reportagem da Folha de São Paulo publicada na última sexta-feira compara a promessa de dinheiro fácil dos jogos play-to-earn a uma combinação de características típicas de day trade aliado à precarização do trabalho.

Em outras palavras, para que as promessas de enriquecimento cujo poder de sedução destes jogos se baseiam se realizem é necessário que os jogadores dediquem grande parte do seu tempo aos games e ao mesmo tempo tenham as habilidades – e um pouco da sorte – necessária para se ter sucesso em operações de compra e venda de ativos com vistas no curtíssimo prazo – o popular day trade.

Especialistas brasileiros ouvidos pelo Cointelegraph Brasil discordam. Heloísa Passos, CEO da SP4CE, ecossistema completo de negócios focados na tecnologia blockchain e dona da segunda maior comunidade de Instagram do mundo e maior da América Latina dedicada ao Axie Infinity, os jogos play-to-earn são um fenômeno novo, ainda em estágio inicial de desenvolvimento, sobre o qual ainda não se pode tecer comentários definitivos.

Por enquanto, segundo ela, alguns desses jogos em blockchains que recompensam os jogadores com tokens de utilidade podem ser considerados uma fonte de renda complementar interessante para os usuários.

Precarização do trabalho

Segundo a reportagem da Folha de São Paulo, os games play-to-earn seriam similares ao que aplicativos como o Uber representam para motoristas e clientes: uma plataforma de intermediação entre os usuários e o mercado. Tanto em um caso como no outro, as regras de funcionamento e compensação são determinadas pelas empresas que os criaram e administram. No caso do Axie Infinity, a vietnamita Sky Mavis.

No entanto, tanto as recompensas para os jogadores do Axie e os pagamentos para os motoristas do Uber quanto as taxas de transação envolvidas em cada transação são determinadas por uma dinâmica impessoal de ambos os mercado que se ajusta em função da oferta e da demanda.

Enquanto a economia interna do jogo gerar benefícios financeiros para os jogadores, assim como as propriedades intrínsecas do Bitcoin o tornam valioso para os investidores que o possuem, ele tende a expandir sua base de usuários e continuar crescendo, conforme explicou à reportagem Thiago Falcão, professor de Mídias Digitais na UFPB (Universidade Federal da Paraíba):

“O que essa dimensão da blockchain e da criptomoeda faz é dar um lastro para essas economias virtuais, com investidores garantindo a estrutura, o funcionamento e o equilíbrio daquele contexto”.

No caso do Axie Infinity, foi justamente o crescimento imprevisto do jogo que desajustou sua economia, fazendo com que os desenvolvedores precisassem intervir para tentar salvar o sistema econômico do Axie do colapso.

À medida que o preço dos tokens declinava no mercado de criptomoedas por conta de uma pressão inflacionária causada pelo crescimento da base de usuários e da emissão acelerada de SLP em uma proporção superior à quantidade de SLP que era queimada, o Axie Infinity deixou de ser atrativo para aqueles que o buscavam como fonte de renda em substituição a ocupações tradicionais.

Foi o caso de um empresário ouvido pela reportagem da Folha que começou a jogar o Axie Infinity em novembro de 2021 através do sistema de scholarships. Conhecido como escolinhas no Brasil, o sistema funciona através do recrutamento de jogadores que se tornam aptos a participar do jogo utilizando NFTs cedidos pelos donos do empreendimento em troca de uma participação sobre eventuais ganhos que costuma variar entre 30% e 50%.

Embora o preço do SLP já estivesse em declínio nessa época, ele conta que era possível fazer entre R$ 770 e R$ 1.000 por mês dedicando-se ao jogo duas horas por dia. Em janeiro ele resolveu abandonar o Axie depois que seus rendimentos caíram para R$ 154 ao mês.

Assim, segundo o professor, se os jogadores não tiverem um conhecimento prévio sobre mercados financeiros, e em especial sobre a dinâmica do mercado de criptomoedas, pode haver frustração e, pior, prejuízo financeiro:

“O consumo mais adequado desses jogos demanda que o jogador adentre a cultura das criptomoedas, que entenda de preços flutuantes, compra e venda. É uma introdução ao day trade, ao mercado de ações. Você pode jogar de uma forma desavisada, mas não vai chegar a lugar algum.”

Foi exatamente o que aconteceu com uma estudante de psicologia ouvida pela reportagem da Folha. Após algum tempo tirando R$ 70,00 por semana em um sistema de scholarship, ela resolveu pegar um empréstimo de R$ 5.000 com uma amiga para investir nos seus próprios NFTs e montar um time para jogar por conta própria.

A estudante parece ter agido por impulso, ignorando os riscos inerentes ao mercado de criptomoedas. A volatilidade é um componente indissociável do mercado de criptomoedas, afirmou Fabiano Nagamatsu, diretor da Osten Moove. Todo jogador ou investidor deveria estar ciente deste fato antes de comprometer-se financeiramente em transações envolvendo NFTs e game tokens.

Com as desvalorizações do SLP e do dólar, o investimento custou-lhe um prejuízo de R$ 3.000 sobre o investimento inicial. Os R$ 2.000 restantes estão sendo mantidos em criptoativos, esperando que uma hipotética valorização do SLP possa minimizar suas perdas em algum nível, contou:

“Eu sei que não vou entrar em outro [jogo NFT]. Estou esperando o SLP subir para tentar recuperar pelo menos o que eu investi, e acho que não vale a pena o estresse. Eu prefiro pagar para jogar a jogar para receber.”

Segundo o professor Thiago Falcão, a lógica de jogar para ganhar do modelo play-to-earn se assemelha a uma forma de trabalho precarizada que tem pouco a ver com a ideia de que é possível ganhar dinheiro se divertindo. Ainda mais no sistema de scholarships, no qual os jogadores têm que repartir seus ganhos com os donos dos NFTs:

“Não é uma coisa divertida. Não são mecanismos criados para o entretenimento, mas estruturas de trabalho gamificado. Nos jogos NFT sobra muito pouco do que faz um jogo, um jogo. O prazer, a experiência subjetiva e social de jogar, nada disso existe nesses cryptogames”.

Fabiano Nagamatsu pensa que qualquer pessoa que adere a games play-to-earn tem como objetivo ganhar alguma forma de recompensa e “o prazer delas está em ganhar dinheiro”, portanto não faz sentido compará-los a formas de trabalho precário. Além disso, o diretor da Osten Moove destaca que hoje já existem jogos que não demandam interação constante dos jogadores com a plataforma para obtenção de recompensas.

Maurício Magaldi, mentor de blockchain da Tune Traders, completa o raciocínio favorável aos jogos em blockchain destacando que as críticas ao modelo play-to-earn são fruto da incompreensão das novas formas de organização social do trabalho que se estruturam em torno da tecnologia blockchain. Assim como as criptomoedas, comumente associadas à especulação e à falta de conexão com a realidade, elas também são alvo de preconceito: 

Acho que essa é uma análise superficial e prematura desse fenômeno recente. O modelo de p2e permite aos jogadores escolherem não ficarem reféns de trabalhos insalubres e por vezes indignos, e também ambicionarem um patamar de renda maior do que oferecido por esses tipos de trabalhos braçais.

Economicamente, trata-se de um sistema cujos modelos estão em constante aperfeiçoamento para diminuir as barreiras de entrada de novos usuários, tornando os jogos mais inclusivos e democráticos, afirma Magaldi:

A barreira para participar dessa nova economia é cada vez menor com o avanço dos tokenomics – as políticas monetárias desses jogos que são programadas sobre as Blockchains – para modelos cada vez mais equilibrados. Quando os jogadores conquistam seus ativos digitais dentro do jogo é possível que eles os monetizem mesmo quando não estiverem jogando, colocando esses ativos à disposição de uma “guilda” que pode continuar jogando com eles, mesmo que o jogador dono daquele ativo esteja desconectado. Isso é bem diferente de um day-trade.”

Conforme noticiou o Cointelegraph Brasil recentemente, o Axie Infinity (AXSchegou a marca de US$ 4 bilhões em negociações e bateu um novo recorde de vendas de Axies, personagens em tokens não fungíveis (NFTs) necessários para participar do game.

LEIA MAIS

Você pode gostar...