Novo Código Civil exclui cônjuge da herança? Entenda a proposta
O Código Civil está sob reforma. E uma proposta, caso aprovada, deve mudar a forma como a sucessão de bens é realizada no Brasil. Ela prevê que os cônjuges percam o status de herdeiros necessários.
O texto que atualiza o Código Civil é amplo e foi construído por uma equipe de experts do Judiciário, a partir de contribuições da sociedade.
O resultado do trabalho virou um anteprojeto encaminhado ao Senado. Rodrigo Pacheco (PSD), presidente do Senado, prometeu dar andamento ao texto dos juristas em um projeto de lei, que discutirá a nova configuração do Código Civil no Congresso.
Conhecido como a “Constituição do Cidadão Comum”, o Código Civil estabelece regras para os brasileiros desde o momento em que são concebidos (ou seja, antes do nascimento) até após a morte. Nele constam, por exemplo, regras relacionadas ao casamento, às atividades em sociedade, como a regulação de empresas e contratos, e os processos de sucessão e herança.
Herdeiros necessários: entenda
Na linguagem jurídica, herdeiros necessários são aqueles que têm direito legal a uma parte da herança deixada por uma pessoa falecida. No Código Civil atual, cuja última atualização ocorreu em 2002, o artigo 1.815 estipula que estão neste grupo os descendentes (filhos e netos), os ascendentes (pais e avós) e os cônjuges.
Quem está em uma dessas posições garante o direito de receber, de forma equânime, a divisão obrigatória de 50% do patrimônio da herança, nomeada de legítima.
O cálculo da herança legítima é feito sobre o valor dos bens existentes no início do processo de sucessão, subtraindo do patrimônio as despesas realizadas com funeral e eventuais dívidas que o falecido tenha deixado.
LEIA MAIS: Herança: quem fica com o quê na ausência de um testamento
Os outros 50% do patrimônio são listados como herança disponível. Nela, a destinação dos bens é livre e pode beneficiar qualquer pessoa.
Cônjuge: perda de status
Se o Congresso aprovar o texto apresentado pelos juristas, o cônjuge perderá o status de herdeiro necessário e será excluído do artigo 1.845 do Código Civil, que lista os beneficiários diretos da herança.
Especialistas de Direito de Família e Sucessões consultados pelo InvestNews têm opiniões distintas sobre a nova redação do Código Civil que será discutida no Senado.
Flávia Andrade, sócia da área de contencioso do TozziniFreire Advogados, destaca que o texto deixa o processo de sucessão menos impositivo.
“Os próprios cônjuges vão passar a decidir a sucessão em conjunto, seja através do regime de bens, mas também no futuro, por meio de testamento ou doação”, diz a advogada.
Já a advogada Miriane Ferreira é contrária à medida. Conhecida por tirar dúvidas sobre direito de família nas redes sociais, Miriane criou um abaixo-assinado online contra a retirada dos cônjuges do rol de herdeiros necessários. Para ela, a alteração vai afetar em cheio as mulheres.
LEIA MAIS: Imposto sobre herança: como as holdings podem aliviar o bolso da família
“Em diversos países, o cônjuge concorre diretamente com descendentes ou ascendentes. Por que, então, justo no Brasil, lugar em que a mulher ocupa uma evidente posição de vulnerabilidade [econômica], estamos diante de presenciar tal retrocesso legislativo?”, diz o texto do abaixo-assinado na internet.
Novas configurações familiares
Especialistas também apontam que a reforma do Código Civil busca resolver as discussões por herança, sobretudo, nas famílias reconstituídas, aquelas compostas pela união de um casal com filhos de relacionamentos anteriores.
Laísa Santos, especialista em Planejamento Patrimonial e Sucessório pela Fundação Getulio Vargas (FGV), explica que, nesta configuração de família, cada cônjuge já construiu seu patrimônio particular ao longo da vida. E essa acumulação de bens ocorreu sem a participação do parceiro do novo relacionamento. “São casais que não têm o desejo de que os bens sejam partilhados para além dos seus filhos”, diz.
Também há casais que optam por casamentos sob o regime de separação total de bens. “É o tipo de união em que o casal não deseja partilhar nem mesmo o que foi adquirido durante o relacionamento, muito menos depois do falecimento do parceiro”, aponta.
LEIA MAIS: Fale sobre a herança agora ou aguente problemas depois
Como ficam os cônjuges?
Caso o cônjuge perca o status de herdeiro necessário, ele ainda teria direito à herança na ordem de sucessão hereditária, cuja regra está prevista no artigo 1.829 do Código Civil.
Os primeiros da fila são os descendentes (filhos e netos), os ascendentes (pais e avós) e, depois, os cônjuges.
Na prática, caso a pessoa falecida não tenha deixado um testamento, os bens serão transmitidos aos pais, avós, filhos e netos. Na ausência de todos eles, o patrimônio é automaticamente destinado ao cônjuge.
LEIA MAIS: ‘Sonho da offshore própria’ segue firme, mesmo após taxação
A ressalva está no próprio testamento, dizem os especialistas. Se houver no documento o bloqueio de bens ao cônjuge, ele não será contemplado com a partilha.
Em alguns regimes de bens, há ainda a previsão da meação, que corresponde à metade do patrimônio comum do casal que foi adquirido em vida.
Ela tem efeito na comunhão parcial de bens (regime padrão), com o patrimônio adquirido após o casamento, e no regime de comunhão universal, com todos os bens acumulados por ambos antes e depois do enlace. Neste caso, é preciso confirmar a escolha do regime em um pacto antenupcial (contrato).
Tanto no texto atual como no anteprojeto do Código Civil, o cônjuge permanece com o direito de habitação no imóvel adquirido pelo casal, caso não tenha lugar para morar após o falecimento do parceiro.
Há ainda o usufruto sobre alguns bens da herança, como a renda de um imóvel alugado, se ficar comprovado não ter condição financeira.
Para os advogados consultados, a reforma do Código Civil deve ampliar a demanda por planejamento sucessório no Brasil, mecanismo ainda pouco acionado pela maioria das famílias.
“As novas regras vão exigir dos indivíduos mais proatividade na organização de seus bens para garantir que suas vontades sejam respeitadas após o falecimento”, salienta José Rubens Constant, advogado do escritório J Legal.