Autoritarismo, milícias, tráfico de drogas e de armas: o lado obscuro da aprovação do Bitcoin em El Salvador
Apesar de animação com a aprovação do Bitcoin em El Salvador, projeto autoritário do governo e atuação de milícias causam preocupação internacional
Na semana passada, El Salvador chamou atenção do mundo ao aprovar um projeto que reconheceu o Bitcoin como moeda legal no país.
O projeto apresentado pelo presidente Nayib Bukele e aprovado pelo congresso do país reconhece o Bitcoin como moeda do país, sendo aceito agora para pagamentos de bens e serviços e livre de tributação por ganho de capital na valorização ou desvalorização da criptomoeda.
Uma coluna da Folha do advogado Ronaldo Lemos desta segunda-feira, porém, expõe um lado obscuro da aprovação do Bitcoin por El Salvador, o segundo país mais violento do mundo. O país é comandado por um presidente autoritário, que tem desmontado as instituições democrátivas do país e levantado suspeitas sobre as verdadeiras intenções para a adoção da maior criptomoeda na economia nacional.
O país conta com uma taxa de homicídios de 66 mortes para cada 100.000 habitantes e é dominado por duas grandes milícias, a Mara Salvatrucha (MS-13) e a Barrio 18, que têm atuação tão ampla que chega aos EUA. As milícias dominam mercados criminosos como tráfico de armas, drogas e pessoas.
Nos Estados Unidos, os congressistas mais conservadores chegam a citar a atuação das milícias salvadorenhas como um dos motivos mais fortes para o controle da imigração latina no país e enrigecimento dos trabalhos nas fronteiras.
Com isso, a adoção do Bitcoin traz preocupações de que a criptomoeda seja usada pelos grupos criminosos para ampliar a lavagem de dinheiro internacional e se fortalecer ainda mais em El Salvador.
Também na semana passada o Fundo Monetário Internacional reagiu à iniciativa salvadorenha e classificou que “a adesão ao Bitcoin como moeda corrente apresenta inúmeros problemas macroeconômicos, financeiros e legais”. O país negociava um empréstimo de US$ 1 bilhão com o FMI, mas deve ter problemas agora com a aprovação junto ao fundo.
O uso massificado do Bitcoin, lembra a coluna, também enfrenta problemas na velocidade das transações, que precisam de mais escalabilidade para estar equiparada a sistemas globais como os da Visa e da Mastercard.
O Bitcoin hoje processa 4,6 transações por segundo, enquanto as gigantes de pagamentos podem chegar a 1.500 por segundo. Além disso, as transações em Bitcoin custam muito caro para serem usadas em serviços do varejo, o que também pode ser um problema para a adoção de pagamentos pela população – mas com custos que podem valer à pena para as organizações criminosas.
Outra preocupação é com a escalada de ataques de ransomware ao redor do mundo pedindo Bitcoin de resgate. Autoridades nos Estados Unidos demonstraram preocupação de que a adoção do BTC em El Salvador também transforme o país um pólo de cibercriminosos.
Projeto autoritário e centralizador
O presidente Nayib Bukele também é uma preocupação da comunidade internacional. Eduardo Escobar, diretor da ONG Acción Ciudadana, falou ao El País sobre a iniciativa do presidente e disse que a aprovação do Bitcoin teria sido uma “cortina de fumaça” para desviar a atenção dos problemas de corrupção do governo, que tem perseguido opositores, controlado os demais poderes, destruído instituições democráticas e até ensaiado uma aproximação com a China.
“Houve um golpe de Estado em 1º de maio, liderado por Bukele e apoiado pela Assembleia Legislativa, no qual afastaram os magistrados e o procurador. Na semana passada soubemos que o Governo expulsou a Comissão Internacional contra a Impunidade em El Salvador porque investigava 12 casos de corrupção do atual Governo”
Risa Grais-Targow, analista para a América Central do Eurasia Group, também acredita que a iniciativa de Bukele é movida por uma tentativa de recuperar sua imagem, prejudicada por escândalos de corrupção:
“O presidente Bukele gosta de armar um bom show e esta proposta reforça sua imagem de millennial disruptivo que está agitando as coisas em El Salvado. Está propondo isso como uma forma de dinamizar a economia, mas, ao estudar o contexto, em que há denúncias de corrupção contra pessoas próximas a ele, a política econômica parece bastante improvisada.”
Com 70% da economia do país nas mãos de trabalhadores informais, ainda não se sabe se a tese de bancarização em massa do Bitcoin será comprovada. Ricardo Castaneda, economista do Instituto Centro-Americano de Estudos Fiscais (ICEFI) de San Salvador, diz que a maioria da população do país precisará ser educada minimamente para lidar com criptomoedas:
“Podemos supor que muitos consumidores serão relativamente ou completamente novos nas criptomoedas e nas plataformas usadas para negociá-las e armazená-las. Sem uma campanha de alfabetização cibernética em massa, os consumidores podem ser presa fácil para cibercriminosos sofisticados que usam o phishing e outros golpes para obter acesso às suas contas. Não há lastro com as criptomoedas como poderia haver com as moedas lastreadas pelo banco central”
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