Advogado avalia nova proposta de imposto sobre criptomoedas no Brasil: ‘o varejo vai sentir’

Em nota técnica, ABCripto comenta deslizes cometidos pelo legislados no PLV 15/2023, e Daniel de Paiva Gomes compartilha mais detalhes com o Cointelegraph Brasil

Na última sexta-feira (11), o Cointelegraph Brasil noticiou sobre as medidas provisórias (MP) 1.171 e 1.172. Em suma, a MP 1.171 propõe a taxação de rendimentos de brasileiros obtidos através de investimentos no exterior. A MP 1.172, por sua vez, incluiu criptoativos e carteiras digitais na proposta mencionada. 

Ontem (14), a ABCripto publicou uma nota técnica salientando os problemas em torno do Projeto de Lei de Conversão nº 15/2023 (PLV 15/2023), que une as MPs 1.171 e 1.172. O Cointelegraph Brasil conversou com Daniel de Paiva Gomes, um dos advogados que participou da redação da nota técnica, para buscar esclarecimentos sobre os impactos do PLV 15/2023.

Equiparação inadequada

Em seu texto, a MP 1.172 equipara criptoativos a aplicações financeiras. A ABCripto, junto com os advogados Daniel e Eduardo de Paiva Gomes, do escritório Vieira, Drigo, Vasconcellos e Paiva Gomes Advogados questionam tal equiparação através de nota técnica.

As aplicações financeiras, aponta a ABCripto, apresentam uma relação clara entre o investidor e o retorno esperado. Como exemplo, a nota técnica menciona ações, títulos, fundos mútuos e imóveis.

Já os criptoativos, por sua natureza intrínseca, não se enquadram de forma adequada em nenhuma dessas categorias. A nota salienta que é pouco prudente englobar todos os diferentes ativos digitais sob uma única definição e compará-la a aplicações financeiras.

“Eles [os criptoativos] são intangíveis que, mais do que representações de valor, funcionam como ‘envelopes de direitos’. A diversidade de criptoativos (ativos nativos de blockchains ou tokens) ostenta diferentes características e funções, variando conforme seu conteúdo e finalidade”, aponta o documento publicado pela ABCripto.

Ao englobar todos os ativos digitais sob o guarda-chuva de “criptoativos”, sem prestar detalhes de diferenciação, o PLV 15/2023 cria uma forte insegurança jurídica. Um dos exemplos mencionados na nota técnica são os ativos digitais lastreados em ativos reais, que mudam de acordo com ao qual estão ligados.

“A adaptação contextual dos criptoativos – analogamente ao comportamento camaleônico – destaca a impossibilidade de categorização única. Cada criptoativo, a depender de seu contexto e função, pode assumir uma natureza jurídica variável. Rotulá-los genericamente como aplicações financeiras seria uma simplificação excessiva e tecnicamente equivocada.”

Outro ponto levantado pela nota técnica é a menção às carteiras digitais no PLV 15/2023. Mais precisamente, a norma afirma que todas as “carteiras digitais com rendimentos” são aplicações financeiras. Uma carteira com opção de staking nativo, por exemplo, poderia ser considerada uma aplicação financeira passível de ser tributada.

Não apenas isso, mas o texto legal abre margem para que a custódia feita em exchanges internacionais seja interpretada como uma dessas carteiras digitais. Deixar o saldo em uma exchange como a Binance, então, é o suficiente para fazer com que um investidor seja obrigado ao pagamento de impostos. Eles se dividem nas seguintes alíquotas:

  • 0% para rendimentos de até R$ 6 mil ao ano; 
  • 15% para rendimentos entre R$ 6 mil e R$ 50 mil no ano; 
  • 22,5% para rendimentos superiores a R$ 50 mil ao ano. 

Além disso, não existe definição legal para o termo “criptoativos”, aponta a nota. O termo utilizado pela Lei 14.478/2022, que propõe diretrizes para a regulamentação do mercado de criptomoedas no Brasil, usa o termo “ativos digitais”. 

Ao usar o termo “criptoativos”, então, o PLV 15/2023 potencialmente viola a Lei 14.478/2022. No ordenamento jurídico brasileiro, normas especiais sobre um tema, como a lei que regulamenta o mercado cripto brasileiro, se sobrepõem às normas gerais, como o PLV 15/2023.

Esclarecimentos sobre os impactos

O advogado Daniel de Paiva Gomes esclarece que, caso o PLV 15/2023 seja aprovado em sua forma atual, “o varejo vai sentir um impacto considerável”. Abaixo, ele presta mais esclarecimentos em conversa com o Cointelegraph Brasil.

Cointelegraph Brasil (CTBR): para tornar a questão clara para os leitores, o que é uma nota técnica e qual é o seu objetivo?

Daniel de Paiva Gomes (Daniel): uma nota técnica não é um documento formal previsto na legislação. Então, não é como se fosse um recurso de apelação ou uma petição administrativa específica. Ela é um documento atípico que se destina a marcar uma posição. Então, notas técnicas não são protocoladas, pelo menos a priori, em nenhum tipo de instituição.

A nota técnica visa dar uma notícia para o mercado, de forma ampla, sobre o apoio ou o descontentamento quanto a uma determinada iniciativa legislativa. E o intuito foi justamente marcar uma posição falando: “olha, essa equiparação abstrata de cripto e carteira digital com aplicações financeiras localizados no exterior não tem razão de ser”. É um documento que traz subsídios técnicos que, porventura, pode chegar ao tomador de decisão através da mídia 

Isso pode chegar até o Congresso Nacional, deputados e senadores, para que a gente tenha correção e a supressão dessa menção no texto final. Esse é o objetivo da nota técnica.

CTBR: de acordo com o artigo 9º, da MP 1.171, rendimentos em staking em uma plataforma como a Lido podem ser tributados se passarem de R$ 6 mil ao ano? O mesmo vale para pools de liquidez em DeFi?

Daniel: em tese, sim. Por mais absurdo que seja, né? Não está definido nesse projeto de lei o que é, abre aspas, localizado no exterior, fecha aspas. Então, como eu posso saber se o resultado positivo advindo de uma operação em DeFi, ela é localizada no exterior ou não?

Tem projetos que permitem a identificação de onde está o administrador do pool de liquidez, onde está eventualmente o emissor do token, onde está a entidade que está responsável pelos pagamentos, a software house, mas tem cenários que não.

E aí algumas dúvidas surgiriam, por exemplo: vai prevalecer o que? A localização de quem desenvolveu o software? A localização do emissor do token? A localização de quem eventualmente criou o contrato inteligente para pagar aqueles rendimentos de staking ou de DeFi? Não tem isso na norma. 

Então, fica tão amplo, mas tão amplo, que abstratamente é possível dizer: bom, a Lido não é um projeto brasileiro, não está aqui. Se não está aqui, não tem base fixa aqui, por exclusão seria um projeto localizado no exterior e os pagamentos seriam provenientes do exterior. Isso é um pouco esquisito porque, no mundo cripto, não existe uma geolocalização predefinida, salvo projetos específicos como, por exemplo, aqueles que envolvem talvez um jogo no qual você consegue ver quem a empresa que emitiu, onde ela está, etc. 

Mas não dá para falar, por exemplo, que o Bitcoin está geolocalizado em algum lugar predeterminado. Por isso, eu diria que a forma como a norma está redigida prevê que sim, o resultado positivo de uma interação na Lido ou pools de liquidez em DeFi pode ser considerado como localizado no exterior. E aí, geraria uma discussão litigiosa entre contribuinte e fisco, e ninguém quer isso.

Até porque, a fiscalização e execução disso são muito complexas. E tem mais: não dá para esperar que a população brasileira, o cidadão médio, tenha a sagacidade de se questionar: “espera aí, esse rendimento é localizado no exterior ou no Brasil?”. Porque, se for no Brasil, aplica a regra geral de ganho de capital até 35 mil reais com isenção. E se for no exterior, são aplicadas as novas regras do PLV 15/2023. 

É muito oneroso exigir esse nível e esse detalhe de compliance. E também não dá para criar um terrorismo fiscal e fazer com que os usuários parem de utilizar essas plataformas por medo de qualquer enquadramento tributário. Qualquer sistema tributário tem que ser neutro. Ele não pode distorcer comportamentos.

CTBR: a MP 1.171 é apenas para rendimentos? Em caso de negociação de criptomoedas em exchanges estrangeiras, o imposto praticado ainda será o imposto sobre ganho de capital?

Daniel: se aplica aos ganhos através de negociações também. Na literalidade do conceito, e o modo como é detalhada a tributação, fala-se em rendimentos e em ganhos decorrentes da alienação dos ativos que estão dentro do conceito de aplicação financeira que, por conseguinte, também se refere a criptoativos.

Então, no caso das exchanges estrangeiras, fica ainda mais nítido que há um ganho de capital ou um rendimento de uma operação localizada no exterior. Só que tem uma sub-pergunta aí bastante perigosa, que é a seguinte: para eu dizer que a plataforma está localizada no exterior, o que prevalece é o domicílio do intermediário, que é a exchange, ou é a nacionalidade/domicílio do dono do projeto que emitiu o token?

Se for a segunda opção, aí os ativos que estão sendo negociados até em corretoras brasileiras poderiam ser considerados criptoativos como aplicações financeiras localizadas no exterior. Ou seja, quase 100% do mercado. São poucos os casos com alta liquidez e capilaridade de projetos brasileiros.

Haveria, então, um cenário onde praticamente todas as operações feitas em corretoras brasileiras seriam basicamente venda de aplicação financeira no exterior, se o que prevalece é a nacionalidade barra domicílio do emissor. E aí teremos muitos problemas decorrentes disso.

CTBR: como fica a questão das bridges? Usar uma carteira MetaMask para trocar 2 ETH pelo equivalente em tokens OP faz com que as operações sejam tratadas pelo PLV 15/2023?

Daniel: na materialidade, sim. Seria uma interpretação conjunta, não só do que está no PL de conversão, mas também por conta do entendimento já vigente da Receita Federal do Brasil, no sentido de que uma operação de “cripto para cripto” é um fato gerador para fins de imposto de renda.

CTBR: quais outros casos de uso do varejo que podem ser afetados pela aprovação do PLV 15/2023 em sua versão atual?

Daniel: vamos imaginar que você comprou uma skin em um jogo cripto, que é um NFT, e isso é um conteúdo lúdico, é para usar no jogo. Mas digamos que o emissor está lá fora, como a Blizzard, e você revendeu esse NFT no mercado secundário. Para os fins dessa legislação, isso seria uma aplicação financeira no exterior.

Vender skin vem desde o mundo Web2, e não é uma aplicação financeira. É como você vender uma carta de baseball rara, uma carta de Pokémon, coisa que o valha. Outro exemplo são os tokens de utilidade que dão acesso a bens e serviços. Se eu compro um token de utilidade “localizado no exterior”, e aí tem toda aquela problemática sobre o que é entendido como localizado no exterior no mundo cripto, um token de utilidade ficaria uma situação bem esquisita.

É necessário olhar o conteúdo do token de utilidade e, assim como todos criptoativos, prevalece a função. Imagine que esse token dá acesso a um clube de benefícios, para que alguém utilize e ganhe descontos em um bem físico digital ou em um serviço. Aí, por ficção, esse token também passaria a ser uma aplicação financeira. Então, realmente, é algo que distorce bastante a realidade. 

Pegando o exemplo de NFTs, o emissor do Bored Ape claramente não está no Brasil. O NFT então passa a ser, se essa lei for aprovada do jeito que está, uma aplicação financeira localizada no exterior, e será tributada como tal. Não há mais a isenção de 35 mil reais e, eventualmente, na hora de usufruir de alguma utilidade, pode ter um conflito entre o conteúdo que é usufruído e a forma cripto que atrai a qualificação como aplicação financeira.

Eu diria que esses são alguns exemplos. Na própria nota técnica, a gente trouxe outros exemplos também. São alguns exemplos de impacto para o setor de varejo. Mas os principais deles foram, eu diria: a falha do legislador em antever o que seria “localizado no exterior” para o mundo cripto; utilizar o termo “criptoativo” quando não existe definição legal de criptoativo, há apenas a definição de ativo virtual; e não olhar para essa natureza camaleônica que eu chamo dos criptoativos. 

Se a gente está falando de um token de valor mobiliário, ele é um ativo financeiro, e ativos financeiros por natureza geram rentabilidade, que são as aplicações financeiras. Então tudo bem. Agora, pegar um token de utilidade, um token de pagamento, um NFT de uma skin de um jogo, e falar que tudo isso é uma aplicação financeira, não faz o menor sentido.

Uma alteração no PLV 15/2023 para a retirada dos trechos relacionados ao mercado de criptomoedas depende de emenda de um dos legisladores, que deve ser oferecida até o dia 28 de agosto.

Abaixo, é possível acessar a nota técnica da ABCripto em sua integralidade.

Nota Técnica – PLV 15/2023 by Gino Ferreira on Scribd

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