Especialistas em direito e tecnologia comentam suspensão do Telegram: ‘medida excessiva’

Medida do Poder Judiciário pode não ter o efeito pretendido, lesando apenas usuários que usam o aplicativo de forma legítima

Na quarta-feira (26), o aplicativo de mensagens Telegram foi suspenso no Brasil por uma sentença emitida pelo Tribunal de Justiça do Espírito Santo, a pedido da Polícia Federal (PF). Fontes ouvidas pelo Cointelegraph Brasil comentam sobre a seriedade da medida, possíveis suspensões futuras em outros aplicativos e sobre os detalhes legais envolvendo o episódio.

Suspensão e previsão legal

Conforme noticiado pelo G1, a PF solicitou a suspensão do Telegram após o aplicativo não fornecer todas as informações solicitadas envolvendo uma investigação sobre grupos extremistas. A autoridade policial relatou a suspeita de “possível corrupção de menores” por parte destes grupos, incluindo o suposto incentivo à prática de atos antissemitas e racistas.

Os grupos extremistas mencionados pela PF também são suspeitos de induzir os jovens ao cometimento de atos terroristas, como os recentes massacres em escolas no Brasil. No dia 20 de abril, o Telegram entregou informações à autoridade policial, que notificou o aplicativo sobre a falta de alguns dados. Na terça-feira (25), então, foi dado o prazo de 24 horas para que as informações fossem enviadas, sob pena de suspensão dos serviços.

Após o fim do prazo, o Telegram foi oficialmente bloqueado no Brasil, sem previsão de retorno. Atualmente, o aplicativo é utilizado por 61% dos brasileiros que possuem um smartphone, apontou a Forbes em uma publicação de 1º de março deste ano.

José Domingues da Fonseca, sócio do Firmo Cardozo Moreira Advogados, salienta que a internet é uma rede mundial, com o diferencial que deve respeitar regras de diferentes locais. Por isso, decisões jurídicas isoladas podem não ter os efeitos desejados, um deles sendo o cumprimento da lei local.

Isso não significa, contudo, que não haja previsão legal para que medidas de suspensão de aplicativos com alcance internacional sejam aplicadas no Brasil. “Do ponto de vista legal, existem argumentos que suportam a possibilidade de se impor o bloqueio ou suspensão de aplicações na internet caso elas, por exemplo, ignorem decisões judiciais. Essa previsão está no Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014)”, diz o advogado.

O Código de Processo Civil também prevê a possibilidade de que um processo seja dirigido adotando “todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial”, acrescenta Fonseca.

Mesmo assim, o advogado ressalta que existem defensores da ideia de que o Marco Civil da Internet não autoriza o bloqueio ou suspensão de aplicações na internet. O que se pode proibir, acrescenta, são atos envolvendo a coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros de dados pessoais ou de comunicações. 

“Isto é, aqueles que interpretam o Marco Civil da Internet na sua literalidade, entendem que a Lei nº 12.965/2014 permite – apenas – o bloqueio das atividades de tratamento de dados pessoais, mas não a aplicação em si.

Na avaliação de Fonseca, os impactos sociais e econômicos gerados pelo bloqueio fazem com que não seja frutífero mirar a plataforma como um todo. Os primeiros a sofrer, destaca o advogado, são os usuários que possuem uma atuação legítima e honesta. 

“Hoje, o Telegram é um grande meio de comunicação e é a principal ferramenta, por exemplo, de portais e players do mercado financeiro e cripto. Aliás, sendo sincero, os usuários criminosos (no caso mais recente, os neonazistas que estão em investigação), possuem tantos outros meios de se organizarem e burlarem a lei.”

Medida excessiva

Apesar de inicialmente justificada, a medida de bloquear o Telegram se mostrou excessiva, avalia Renato Grau, especialista na área de tecnologia e CEO da Innovision, empresa de consultoria digital. Ele afirma que, atualmente, “até o ChatGPT” responde ao caso de forma coerente.

Respostas do ChatGPT ao caso do Telegram. Fonte: Renato Grau/ChatGPT

“É preciso haver supervisão, auditorias e alguma regulamentação, seja nos aplicativos de mensagens, seja em plataformas de redes sociais. Alguém para ditar as boas práticas. Mas penalizar milhões de usuários por causa de ocorrências pontuais, não faz sentido”, afirma Grau. 

Além disso, o CEO da Innovision diz que o Poder Judiciário vem realizando interferências em assuntos que não são de sua responsabilidade. Na visão de Grau, a sociedade brasileira é a parte mais prejudicada por estas ações, que criam um cenário de insegurança. 

Ele menciona também as quatro suspensões já direcionadas ao aplicativo de mensagens WhatsApp, entre 2015 e 2016, e demonstra preocupação com o PL 2.630/2020, a “Lei das Fake News”.

“Ontem foi com Telegram, mas o WhatsApp já sofreu com isto mais de uma vez. O projeto de lei (PL 2.630/2020), conhecido como Lei das Fake News, está em tramitação no Congresso e tem um objetivo aparentemente nobre, mas que pode causar danos ainda piores para os usuários das plataformas e redes sociais, visto que há várias situações subjetivas e com mais de uma interpretação que causarão decisões erradas”, avalia Grau.

O controle demonstrado hoje pelo estado, no entanto, “não valerá para nada” no futuro, diz o CEO da Innovision. Ele acredita que, com o advento da Web3, será cada vez mais comum a existência de plataformas “sem donos”, dificultando o trabalho do estado de vigiar e punir culpados pontuais.

“A própria tecnologia oferecerá outros caminhos. Sempre digo que ‘futuro não se espera, se constrói.’ E o que está se tentando construir – ou destruir – hoje não valerá para o futuro que viveremos”, acrescenta Grau.

E agora?

Para a suspensão atual enfrentada pelo Telegram, José Domingues da Fonseca afirma que o Telegram pode reverter a decisão judicialmente. 

“Tendo em vista que a decisão, ao que tudo indica, foi proferida por um Juízo de 1ª instância da Justiça Federal, há a possibilidade dos advogados do Telegram apresentarem um recurso ao Tribunal competente (no caso, o TRF da 2ª Região) alegando, a título de exemplo, que a medida extrapola a o mínimo de razoabilidade e proporcionalidade”, explica Fonseca. É possível ainda que os representantes do Telegram optem por fornecer os dados que a PF classificou como faltantes. 

O aplicativo de mensagens, no entanto, não é alvo apenas da Polícia Federal. No dia 20 de abril, foi anunciada a abertura de um processo administrativo contra o aplicativo. O anúncio foi feito pelo Ministro da Justiça, Flávio Dino, que justificou a ação dizendo que o Telegram não especifica as medidas a serem tomadas para frear a utilização da plataforma por grupos extremistas. Nesse caso, novas suspensões não podem ser descartadas, e não apenas ao Telegram.

“Por fim, é sempre bom lembrar que as medidas impostas contra o Telegram (hoje) e o WhatsApp (em outros tempos), também podem ser impostas em face de outras aplicações na internet que sejam utilizadas por brasileiros ou resultado se materialize no Brasil. A título de exemplo, foi veiculado na mídia que o Discord estava sendo usado por organização de adoradores e planejadores de massacres em escola.”

Alternativas na Web3

É normal que o Telegram seja utilizado por grupos voltados à Web3, principalmente sobre finanças descentralizadas (DeFi). O motivo são as ferramentas que facilitam a criação de grupos e o sentimento de que o aplicativo monitora menos os seus usuários em comparação com o WhatsApp.

Para os usuários de Web3 que querem continuar utilizando seus grupos no Telegram, a melhor alternativa é usar um VPN para mudar a localização. Alguns navegadores, como Opera e Brave, já contam com VPNs nativos, bastando ativá-los.

Agora, se a intenção é migrar de vez do aplicativo criado por Pavel Durov e usar uma solução descentralizada, a Web3 já oferece algumas alternativas. Uma delas é o Status, um aplicativo de mensagens com interface semelhante ao Telegram, e que permite tanto o envio de mensagens privadas quanto a criação de grupos.

O Session é outra solução para entusiastas da descentralização. O aplicativo é um fork do Signal, comumente usado por empresários do mercado de criptomoedas, já que Changpeng Zhao, CEO da Binance, e outros executivos do setor afirmaram usar o mensageiro. 

Se o objetivo é enviar mensagens com o máximo de privacidade, sacrificando um pouco de praticidade, o Cwtch é um serviço de mensagens peer-to-peer. Por possuir essa característica, só é possível trocar mensagens caso ambos os usuários estejam online. As mensagens são encriptadas através dos serviços do Tor v3. Além disso, é possível organizar conversas em grupo em um servidor que não depende de confiança.

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