Em um mundo sem fronteiras, redes blockchain substituiriam estados nacionais

Instrumentos de política “fiscal” e “monetária” das redes blockchain de contratos inteligentes podem funcionar melhor do que as ferramentas de política econômica dos Estados nacionais.

A escalada das tensões entre as potências ocidentais, de um lado, e a Rússia e a China, do outro, faz com que o equilíbrio geopolítico estabelecido após as quedas do muro de Berlim, em 1989, e do regime soviético, em 1991, esteja por um fio. Embora na época o cientista político Francis Fukuyama tenha decretado o “fim da história”, com a supremacia definitiva do capitalismo liberal enquanto sistema econômico e da democracia como paradigma político, a guerra na Ucrânia pode estar inaugurando uma nova ordem mundial cuja primeira consequência seria o fim da hegemonia do dólar sobre o sistema financeiro global e, ao fim e ao cabo, pode decretar o fim dos Estados nacionais.

Em um mundo cada vez mais baseado em ambientes digitais, no qual o metaverso emerge como a próxima fronteira da internet, não é um mero exercício de futurologia vislumbrar um mundo sem fronteiras, descentralizado, em que redes blockchain interoperáveis forneçam o substrato operacional para substituir os arranjos sócio-econômicos hoje em dissolução. Podemos estar testemunhando a ascensão do “indivíduo soberano” visualizado por James Dale Davidson e Lorde William Rees-Mogg no livro que ostenta esse título, escrito em 1997.

Conforme advertiram os autores, é preciso estar pronto para uma transição traumática. Mesmo “aqueles que mais irão se beneficiar” da transformação não estarão preparados para dar-lhe as boas vindas:

“Você deve entender e se preparar para um enorme desconforto. Uma crise de transição se aproxima. As novas tecnologias de comunicação e de informação são mais subversivas do que qualquer ameaça política aos Estados nacionais desde a viagem do descobrimento da América de Cristóvão Colombo. É importante estar atento porque os governantes no poder raramente reagem pacificamente a eventos que minam sua autoridade. O choque entre o novo e o velho dará forma aos primeiros anos do novo milênio.”

À medida que a violência toma formas inauditas sob a forma de governos autoritários e da exploração de recursos e indivíduos pelas grandes corporações, a criptoeconomia propõe alternativas para lidar com o colapso das estruturas políticas, econômicas e sociais atualmente em curso. Como criptoativo pioneiro, o Bitcoin (BTC) estabelece os parâmetros fundamentais para a reconfiguração da soberania em função do indivíduo – e não mais do Estado.

Em um relatório intitulado “O Fim das Nações – Uma tese de investimento para o longuíssimo prazo”, publicado em setembro de 2021 pela Paradigma Education, os autores afirmam que o Bitcoin cumpre as quatro funções definidas pela teoria declaratória do Estado:

– ter um território definido: tratando-se de uma moeda digital, os limites do Bitcoin estabelecem-se nos 21 milhões de unidades originalmente programadas para serem emitidas – seu suprimento total. “O registro histórico – ou mapa – do Bitcoin se manifesta fisicamente na memória digital, cuja localização real é irrelevante”, diz o relatório;

– ter uma população permanente, e esta é composta pelos hodlers. Na medida em que alguém se desfaz de suas posições em Bitcoin, ela fica de fora do censo não-oficial de Bitcoiners.

– ter uma governança funcional: o consenso de Satoshi Nakamoto, baseado na Prova-de-trabalho (PoW), estabelece um contrato social fundamentado na criptografia. É ela que garante a propriedade privada aos indivíduos, ao passo que os indivíduos financiam a manutenção da rede através do pagamento de taxas de transação.

– Estabelecer relações com outros países: Por padrão, qualquer um pode realizar transações na rede, sem restrições.

Em um mundo em que o funcionamento das instituições se baseia em estruturas de poder baseadas em intermediários, o Bitcoin é uma utopia. Ainda longe de estar estabelecido globalmente enquanto a moeda proposta por Satoshi Nakamoto para minimizar o papel do Estado, o Bitcion contém os elementos que, em tese, permitiriam a superação do confronto entre “indivíduos autônomos e [economicamente] falidos e governos desesperados”, conforme vislumbraram Davidson e Rees-Mogg há 25 anos:

“Ao invés de dominação estatal e controle de recursos, vocês estão destinados a ver a privatização de quase todos os serviços públicos que os governos hoje oferecem. A tecnologia da informação vai destruir a capacidade do Estado de cobrar mais por serviços que valem menos do que os cidadãos são obrigados a pagar por eles.”

Como conclui o relatório da Paradigma Education, o Bitcoin e a tecnologia blockchain têm um potencial que vai além de simplesmente uma alternativa monetária:

“O Bitcoin não é apenas dinheiro, mas sim uma plataforma neutra para formas de dinheiro. Não é nem almeja uma hegemonia global em si mesma, mas é um propulsor para as soberanias locais. Não é uma superpotência, mas sim a última zona neutra.”

Nova ordem monetária internacional

Alguns analistas têm observado que o bloqueio das reservas monetárias russas podem surtir o efeito desejado pelo Ocidente no curto prazo, forçando o inimigo a capitular através de sanções financeiras. O contraveneno, no caso, é que, em um horizonte mais amplo, a medida pode ter ​​precipitado o fim do arranjo monetário internacional inaugurado quando em 1971 o então presidente dos EUA, Richard Nixon, decretou o fim da paridade entre o ouro e o dólar.

Nomeada por alguns analistas como Bretton Woods III, a nova ordem monetária internacional será marcada por um retorno da correlação entre moedas nacionais e commodities e pelo enfraquecimento do dólar.  

Uma reportagem da Wired publicada em fevereiro imagina como seria uma nova ordem monetária baseada nos princípios da criptoeconomia partindo do pressuposto de que os instrumentos de política “fiscal” e “monetária” das redes blockchain baseadas em contratos inteligentes podem funcionar melhor do que a economia “real” dos Estados nacionais.

Sistemas econômicos se caracterizam por atividades inter-relacionadas de produção, consumo e comércio. Nesse sentido, redes blockchain podem ser comparadas a Estados nacionais. Com a diferença de que são redes digitais descentralizadas não circunscritas a um território físico.

Cada uma destas redes possui sua própria moeda que intermedia as atividades realizadas dentro dos seus ecossistemas. Usuários do Ethereum precisarão de ETH para pagar as taxas de transação. Operações na Solana demandam SOL, e assim por diante. 

Isso permite que as redes estimulem suas economias internas a partir da criação de um ecossistema baseado em aplicativos e plataformas que oferecem diferentes tipos de serviços. Desde instrumentos financeiros descentralizados (DeFi) até tokens não fungíveis (NFTs) de utilidades diversas e  jogos eletrônicos em que os participantes são recompensados em função de seus desempenhos.

Quando o preço do token nativo de uma determinada blockchain sobe, consequentemente, atrai mais liquidez para a rede, impulsionando o desenvolvimento do ecossistema através do financiamento de novos projetos e do incremento daqueles já existentes. Gera-se efeito de rede, atraindo mais empreendedores e usuários, expandindo os casos de uso e, fechando o ciclo, a demanda pelo token nativo aumenta, gerando um efeito positivo sobre o preço do ativo.

Na prática, o sistema é muito similar ao modo como as moedas fiduciárias funcionam em relação à economia dos Estados nacionais. Transações comerciais realizadas nos EUA são intermediadas por dólares. Quando o PIB (produto interno bruto) dos EUA cresce (os valores envolvidos e a quantidades de transações sobem), a demanda por dólares naturalmente aumenta. Essa é uma das razões pelas quais, quando uma determinada economia cresce, sua moeda tende a se valorizar em relação às demais.

Foi exatamente o que ocorreu ao longo do ano passado com os tokens de redes de contratos inteligentes subiram exponencialmente à medida que setores adjacentes como DeFi, games e NFTs registraram um aumento considerável de usuários e, consequentemente, de liquidez.

No entanto, nenhuma é capaz de manter uma alta infinita. Os níveis de atividade variam ciclicamente. Estados nacionais usam ferramentas de política fiscal (impostos e gastos públicos) e de política monetária (taxa de juros e oferta de dinheiro) para tentar suavizar ciclos de recessão e expansão. As redes blockchain têm suas próprias ferramentas de política fiscal (taxas de transação) e de política monetária (staking, yield farming, emissão e queima de tokens). Em muitos casos, elas funcionam melhor do que as ferramentas de política monetária dos bancos centrais.

Quando uma economia está superaquecida com excesso de demanda, o banco central promove um aperto de suas políticas fiscais, aumentando as taxas de juros e limitando os gastos públicos. Quando a economia está em recessão, as medidas vão no sentido oposto.

A vantagem das políticas fiscais das redes blockchain é que elas são pré-programadas em contratos inteligentes autoexecutáveis. Portanto, imunes à ação humana. No caso do Ethereum, por exemplo, a taxa de gás cobrada em cada transação equivale a um imposto sobre valor agregado, como o ICMS (imposto sobre circulação de mercadorias e serviços). Em essência, trata-se de uma taxa básica pré-programada para se ajustar em função do nível de atividade na rede. 

Se a taxa de utilização da rede ultrapassa 50% em um movimento de expansão, a taxa de gás aumenta em até 12,5%. Se o nível de atividade for inferior a 50%, caracterizando uma recessão, a taxa de gás diminui. A política fiscal é imposta pelo código. Nenhum indivíduo ou entidade, por mais poderosos que sejam individualmente, pode mudá-la sem concordância da maioria dos usuários da rede.

Bancos centrais tentam ajustar as taxas de juros e a oferta de moeda de acordo com os ciclos econômicos para manter os preços de bens e serviços estáveis e a atividade produtiva em níveis saudáveis. Mas essas decisões passam pela subjetividade, e, por isso, muitas vezes têm efeito limitado, sem falar da defasagem temporal. Normalmente o remédio só é ministrado quando a doença já encontra-se em estágio avançado.

A política monetária das redes blockchain, por outro lado, não depende do discernimento humano e seu impacto é imediato. No Ethereum, parte da taxa básica coletada em cada transação é “queimada”, reduzindo a oferta circulante do token. Isso significa que durante um boom econômico em que há muita atividade na rede, mais ETHs são retirados de circulação, elevando o valor do ETH em relação aos produtos e serviços on-chain, contribuindo para esfriar a economia. Durante momentos de contração, acontece o oposto. Os custos de transação mais baixos ajudam a estimular mais atividades na rede. E como a execução dessa política monetária não depende da ação de nenhum intermediário, seu efeito tende a ser direto e imediato.

A capitalização total de mercados das redes blockchain ainda é pequena quando comparada à “economia real”. O ETH tem atualmente uma capitalização de mercado de US$ 302 bilhões. O valor total bloqueado de protocolos DeFi (TVL) na rede líder do setor de contratos inteligentes é US$ 140 bilhões, de acordo com dados do DeFi Llama. Não é muito, mas, calculando que o PIB do Ethereum seja um terço do seu TVL, isso posiciona a atividade econômica da rede em pé de igualdade com a Eslovênia.

O avanço do metaverso com suas tecnologias imersivas e a consequente migração de uma série de atividades do mundo físico para o virtual  tende a fortalecer ainda mais a economia descentralizada das redes blockchain.

De que forma elas vão coexistir e até sobrepujar as estruturas do Estado nacional como suspeitaram Davidson e Rees-Mogg é algo que não se pode prever. O que tem se mostrado óbvio é que os bancos centrais estão correndo para se apropriar da tecnologia subjacente às criptomoedas para sustentarem-se como intermediários, garantindo a manutenção do poder político do Estado através da emissão de suas moedas digitais (CBDCs).

Mais do que uma questão financeira, é do resultado deste embate entre incumbentes e disruptores que depende a emergência ou não de indivíduos soberanos. Por enquanto, como sublinha o relatório da Paradigma Education, “a questão – a escolha que se encara, dia após dia é se você prefere estar no grupo de controle… ou no grupo experimental.”

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