CityDAO e o status legal do principal meio de interação da Web3
Já vimos nesta coluna a evolução do conceito DAO, toda a jornada do ConstitutionDAO no leilão da Sotheby’s, a governança das organização autônomas descentralizadas e seu uso em DeFi, e como estas entidades autogovernadas por código de computador podem nos levar a um novo patamar das franquias esportivas.
No artigo de hoje, veremos como a legislação do Estado americano de Wyoming possibilitou que DAOs tenham personalidade jurídica e, em seguida, exploraremos o CityDAO (uma das primeiras organizações autônomas descentralizadas estabelecidas após esta legislação) cujo objetivo é “construir a cidade do futuro” sobre a blockchain Ethereum (ETH).
Antes de avançarmos, contudo, é bom esclarecer que este artigo não cuidará da validade jurídica dos contratos inteligentes, tema que abordei com profundidade quando tratei de blockchain sob a ótica jurídica.
Também, para garantir que todos estamos na mesma página, é importante lembrar que DAOs são organizações autônomas descentralizadas regidas por contratos inteligentes, com estatutos e regras de procedimento que substituem o gerenciamento operacional cotidiano por um código que se auto executa.
Uma de suas principais vantagens é que, ao contrário das empresas tradicionais, a tecnologia blockchain fornece à DAO uma transparência completa. Isto é, todas as ações e financiamento da DAO podem ser vistas e analisadas por qualquer pessoa, o que reduz significativamente o risco de corrupção, ilícito ou fraude, impedindo que informações importantes sejam censuradas.
Acontece que como uma forma emergente de organização “comercial”, DAOs ainda não são totalmente contabilizados no sentido legal, o que demanda um olhar criativo e inovador, capaz de contornar as fronteiras tradicionais. É isto que veremos a seguir.
O status “alegal” existente na maioria das DAOs
Na maioria das jurisdições, quem deseja criar uma DAO enfrenta inúmeras dúvidas e questões em torno de “se” realmente um DAO deve registrar legalmente, e como este registro se daria, ou ainda, qual deve ser o procedimento para que uma organização descentralizada assine contratos legalmente vinculativos.
A maioria das DAOs existentes não está registrada, não tem personalidade jurídica e têm um status legal, digamos, incerto, e talvez até “alegal” ao invés de ilegal. Pois bem, tal incerteza jurídica pode ser prejudicial ao desenvolvimento dessas organizações, mesmo porque a conformidade com as regras existentes também é difícil.
A própria natureza de uma organização descentralizada significa que não há necessidade de oficiais e diretores, apesar destes papéis serem importantes dentro das corporações, especialmente quando as coisas correm mal.
Outro fator que merece ser considerado é que a base transnacional de membros das DAOs aumenta a complexidade jurídica destes grupos.
Ora, saber com quem você está lidando é também uma base importante para a maioria das atividades econômicas. Esta base torna possível que uma entidade processe ou seja processada e entre em acordos contratuais, bem como adquira, detenha, desenvolva e disponha de direitos de propriedade.
As corporações tradicionais atendem a este padrão de identificabilidade e há muito tempo são reconhecidas como “unidades portadoras de direitos e deveres” – o que significa que são os sujeitos de direitos e responsabilidades, conforme definido pelo sistema legal no qual operam.
Some-se a isto, a maioria das jurisdições ao redor do mundo exige que uma empresa forneça um nome único, um endereço físico do escritório e o nome de pelo menos um diretor para que a empresa receba seu próprio número de identificação e seja inscrita no registro comercial formal.
Ora, todas estas exigências são “atualmente” um desafio para as DAOs, especialmente porque muitos participantes operam com base em pseudônimos, estão domiciliados em diversas partes do mundo, além do fato de que estas entidades autogovernadas por código são (ou pretendem ser) descentralizadas.
Mas o que está acontecendo no Wyoming pode ser o que faltava para as DAOs que desejam formalizar seu relacionamento com instituições legais, e interagir em uma jurisdição com uma base mais sólida.
Uma DAO pode adquirir personalidade jurídica?
Em julho de 2021, o Wyoming tornou-se o primeiro Estado americano a codificar explicitamente as regras em torno das DAOs que desejam ter domicílio naquela jurisdição.
Esta mudança na legislação significa que as DAOs em Wyoming são consideradas uma forma distinta de sociedade de responsabilidade limitada (LLC), o que lhes confere personalidade jurídica e uma ampla gama de direitos, tais como a responsabilidade limitada para seus membros.
Sem essa proteção, uma DAO poderia ser vista como uma sociedade em geral, expondo seus membros à responsabilidade pessoal por qualquer uma das obrigações ou ações da DAO.
Segundo a nova legislação, cada DAO deve ter um agente registrado em Wyoming, e o agente deve estabelecer um endereço físico e manter um registro dos nomes e endereços dos diretores da entidade ou dos indivíduos que possuem atribuição semelhante ao cargo de diretor.
Nessa linha, “CityDAO”, que nasceu em um tweet de Scott Fitsimones, foi uma das primeiras organizações autônomas descentralizadas criadas após essa legislação conhecida como “Wyoming DAO Law”. É o que veremos agora.
O que é, como nasceu e como funciona o CityDAO?
Após o convite de Fitsimones, um pequeno grupo de cidadãos baseados em países como Alemanha, Estados Unidos, Irlanda e Canadá se reuniu então para criar a CityDAO em julho de 2021, com o objetivo de “construir a cidade do futuro sobre a blockchain Ethereum”.
E para fazer isso, o grupo precisaria descentralizar a propriedade dos ativos através da valorização da terra, dos direitos e da governança.
Desde a fundação da CityDAO, os investidores iniciais, aproximadamente 6.000, contribuíram com quase US$ 7 milhões. E o primeiro investimento da CityDAO (denominado “Parcel 0”) foi um terreno de 40 acres em Wyoming, que foi apontada pelos cidadãos da CityDAO (membros da DAO) como uma “aquisição de baixo risco” e o primeiro passo na criação da cidade do futuro.
Os “cidadãos” da CityDAO até então recebem um NFT (token não fungível), bem digital “sem uma participação direta” na propriedade de um terreno no mundo real. O NFT representa estritamente os direitos de governança (propondo e votando sobre as atividades). Os membros podem votar no que a DAO deve fazer, mas eles não têm um “retorno direto” sobre essas atividades na forma de “ganhos antecipados”.
Aqui, importante destacar que a forma de aquisição e os direitos dos cidadãos sobre este NFT têm o intuito de garantir que o CityDAO e seus membros não violem as leis federais de títulos americanas.
Quando a propriedade vem com uma expectativa razoável de lucros derivados dos esforços de outros (parte do que é conhecido como o “teste Howey”), a U.S. Securities and Exchange Commission (que exerce papel semelhante à CVM brasileira) vê a atividade como um contrato de investimento e exige que padrões rigorosos sejam cumpridos, incluindo o registro do ativo e a divulgação de informações detalhadas.
Tudo isso pode mudar no futuro, mas atualmente, tais regras continuam sendo um desafio para a maioria das DAOs.
Organizações tradicionais serão substituídas por DAOs? Conclusões finais
Conquanto as atividades da CityDAO ainda estejam em fase embrionária e experimental, seus cidadãos estão dispostos a descobrir futuros potenciais através de tentativa e erro.
Para um futuro promissor, a comunicação e a colaboração serão, sem dúvida, pontos essenciais para que o grupo alcance seu objetivo de “construir a cidade do futuro”.
Nessa linha, para viabilizar um compartilhamento de informações eficaz e confiável, no início de os membros votaram e aprovaram a doação de US$ 24.000 a um de seus membros, Eric Gilbert-Williams, para produzir o CityDAO Podcast, que apresenta os líderes da comunidade e discute tópicos relacionados a DAO.
Embora a legislação de Wyoming faça avançar o status legal das DAO nesse Estado, as incertezas permanecem em torno do tratamento tributário, da situação legal fora de Wyoming, das nuances da aplicação das leis de títulos em tokens, e outras questões.
E você, acha provável que as DAOs substituam as organizações tradicionais? Entende que suas deficiências atuais devem ser vistas através da lente da inovação ainda em fase inicial?
Consegue visualizar DAOs tomando o lugar das organizações tradicionais para alguns tipos de atividades em nível coletivo? Ou acha que teremos organizações híbridas, onde, por exemplo, empresas “normais” usam contratos inteligentes para celebrar compromissos irrevogáveis, e inalteráveis, após a votação de seus membros?
Já imaginou usar uma organização autônoma descentralizada para permitir que seus funcionários votem sobre quais causas apoiar, ou que consumidores decidam quais recursos incorporar na próxima versão de uma oferta? Fiquem atentos às DAOs, importante ferramenta de interação no espaço da Web3.
Conhecimento é poder!! Nos vemos em breve.
O artigo CityDAO e o status legal do principal meio de interação da Web3 foi visto pela primeira vez em BeInCrypto Brasil.