Blockdeaf: comunidade surda desbrava a Web3 através de iniciativa focada em acessibilidade

Através de aulas de programação, uma linguagem compreensiva para surdos sobre a Web3 e participação em hackathons, coletivo tem disseminado a tecnologia blockchain de forma acessível

A Blockdeaf é um coletivo focado em garantir acessibilidade à comunidade surda dentro da Web3. A ideia por trás do projeto não é fazer com que pessoas ouvintes expliquem sobre essa indústria através da linguagem de sinais, mas permitir que pessoas surdas se capacitem sobre o tema e divulguem o conhecimento entre os seus pares.

O Cointelegraph Brasil conversou com integrantes do projeto sobre a jornada da acessibilidade para pessoas surdas no ramo de tecnologia, os hackathons dos quais a Blockdeaf participou em 2023 e quais são os planos da comunidade para 2024.

Desbravando a Web3

A comunidade focada em acessibilidade é composta pelos mais diversos perfis interessados em Web3. Alan Galeiro, cofundador da Blockdeaf, conta que o projeto reúne desde pessoas que já atuam em áreas de tecnologia de grandes empresas, como Itaú e Vivo Telefônica, até quem nunca teve experiência no ramo de tecnologia.

Em razão da diversidade de membros atuantes na comunidade, foi necessário criar uma linguagem não só acessível para pessoas surdas, mas também para aquelas que nunca tiveram contato profundo com o ramo de tecnologia. “Na nossa didática, o surdo precisa ensinar para o surdo. Só eles são capazes de entender as dificuldades em aprender sobre novas tecnologias e as particularidades da comunicação”, diz Galeiro.

Rhalff Coutinho, CEO da Blockdeaf, acrescenta que o aprendizado da comunidade surda já se diferencia desde os primeiros passos, ao aprender a ler e escrever. Por isso, ainda que uma pessoa ouvinte se disponha a explicar sobre a Web3, a comunicação não será fluida o suficiente para o aprendizado pleno.

A dificuldade em disseminar conhecimentos sobre Web3 sem o entendimento das particularidades na forma de comunicação é também levantada por Joaquim Amado, presidente da Associação de Tecnologia e Inovações de Surdos (ATIS) e integrante da Blockdeaf.

“Precisamos não apenas da interpretação, precisamos entender a conceitualização de cada palavra do mercado Web3. Eu, enquanto surdo, consigo compreender o que os outros precisam”, conta Amado ao Cointelegraph Brasil, com a tradução do intérprete Pedro Henrique Leite, também da Blockdeaf.

Amado, que é professor dentro do projeto e também é doutorando na área de tecnologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, conta que hoje é possível ver mais pessoas surdas interessadas na Web3. Isso é possível através de iniciativas promovidas pela Blockdeaf, como envolvimento com jogos e investimentos. 

“Existem 10 milhões de pessoas surdas no Brasil, e onde elas estão? Por isso surge a Blockdeaf, para que essas pessoas possam continuar a descobrir as possibilidades”, acrescenta Amado.

O empoderamento dessa comunidade através do conhecimento, então, é o objetivo de Amado e da Blockdeaf. Galeiro menciona a Chainlink como grande parceria do projeto, especialmente a desenvolvedora Solange Gueiros.

“A Chainlink, através da Solange, deu aulas completas para um time de desenvolvedores da Blockdeaf durante meses. Agora, ela está preparando o Joaquim como professor, para que ele tenha a mesma relevância na comunidade de surdos. Ele que vai passar todas as novidades de Web3, treinamento com Solidity, para os outros participantes”, explica o cofundador da Blockdeaf. 

Dificuldades acumuladas

Amado conta que o ramo de tecnologia, pela sua terminologia própria, não é amigável à comunidade surda. Seu interesse na área começou por outra paixão: arqueologia.

“Eu gostava muito de arqueologia, e minha mãe me apresentou materiais sobre o tema para que eu pudesse aprender. Descobri que, através das buscas online, eu poderia aprender mais. E foi assim que cheguei na área de tecnologia”, explica o professor da Blockdeaf.

Nem todas as pessoas surdas, porém, conseguem trilhar esse caminho. Amado destaca que, por isso, entrar na Web3 é uma tarefa que envolve outras dificuldades acumuladas, que começam desde o aprendizado à língua portuguesa mencionado por Coutinho. 

“Nós já passamos pela Web1 e Web2, e a Web3 traz ainda mais novidades. Mas e os surdos, que dificilmente tiveram acesso aos primeiros estágios da internet? São várias informações novas e contextos diferentes, que criam dificuldades tão grandes que, muitas vezes, pessoas surdas não sabem do movimento em direção à Web3. Essa informação, que é tão básica, não consegue chegar a essa comunidade”, conta Amado.

O trabalho feito pela Blockdeaf, contudo, tem sido bem-sucedido na construção de uma comunidade que tem crescido e amadurecido com o tempo, salienta Amado. “Eu me sinto em grupo, eu sinto essa união e como ela é importante.”

Presença em hackathons

A introdução à Web3 dos membros da comunidade Blockdeaf não se limita à teoria. Joaquim Amado comenta que, em 2023, um time de programadores composto por pessoas surdas já disputou três diferentes hackathons: DIGIFI Buildathon, organizado pela Ethereum Brasil; Hyperdrive, organizado pela Solana; e DevX Global, organizado pela Polygon.

O projeto desenvolvido foi uma carteira que pudesse realizar transações com criptomoedas mesmo sem acesso à internet, através de mensagens de texto, chamada Vibra. No pitch, apresentado por Joaquim Amado, a equipe Blockdeaf destaca que 30% dos brasileiros não possuem acesso à internet, e isso motivou a criação da Vibra.

O saldo da carteira pode ser recarregado com Pix, e todo o processo de conversão é automatizado. Além disso, a Vibra possui um modelo de login simples, para que pessoas ainda não familiarizadas com esse tipo de solução consigam utilizar o serviço facilmente. A carteira conta também com instruções em linguagem de sinais.

O uso de blockchain, destaca o pitch, se dá em razão de sua resistência durante tempos de crise, garantindo que as transferências sejam feitas facilmente.

Para 2024, Joaquim Amado afirma que já existem planos definidos para a Blockdeaf. “Já temos planos para 2024, queremos mais pessoas trabalhando com a gente e fazer a comunidade crescer ainda mais. Também estamos buscando parcerias que podem auxiliar no crescimento da empresa, para termos recursos para levar esse conhecimento a outras pessoas e valorizá-las pelo conhecimento que adquirem”, elenca.

Quanto à participação em novos hackathons em 2024, com novos projetos, Amado destaca que existe um passo mais importante antes de definir essas questões.

“Nós queremos participar de mais hackathons e criar novos projetos, mas precisamos verificar se temos fragilidades no processo de aprendizado da comunidade. Queremos garantir o empoderamento através do conhecimento, pois as pessoas que buscam conhecimento se sentem capazes, elas sentem que podem pisar em novos territórios”, diz o professor da Blockdeaf.

Imagem do pitch da Vibra

Mais planos para 2024

Além de captar o retorno da comunidade e polir possíveis falhas no processo de aprendizado, e direcionar esforços para novos projetos, o ano que vem reserva outras novidades para a Blockdeaf. 

A primeira delas, revela Rhalf Coutinho, é a realização do primeiro evento sobre Web3 voltado totalmente às pessoas surdas. Coutinho estima a participação de 1.000 a 2.000 pessoas, em um local a ser definido em São Paulo.

Alan Galeiro acrescenta que, no ano que vem, existe a possibilidade de que desenvolvedores formados na Blockdeaf comecem a ser direcionados ao mercado de trabalho. 

“Já temos interesse de duas empresas da Web3, que querem contratar pessoas surdas. Mas ainda estamos preparando o time, ainda não nos sentimentos prontos para disponibilizar profissionais em tempo integral, pois ainda falta uma trilha de conhecimento que a Solange ainda vai lecionar”, explica o cofundador da Blockdeaf.

Joaquim Amado se mostra otimista em relação ao futuro da comunidade surda dentro da Web3, afirmando que “a semente já foi plantada”.

“Nós precisamos precisar fortalecendo a proposta de espalhar a Web3 e a educação financeira, para pararmos de sermos vistos como frágeis. Precisamos trazer a educação e, através dela, trazer uma comunidade surda mais madura. Precisamos de paciência e persistência, pois dentro da sala de aula, sabemos que estamos entre nossos pares e levaremos o conhecimento”, conclui Amado.

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