PL aprovado no Senado pode falhar no combate a crimes com criptomoedas e prejudicar empreendedorismo, afirmam especialistas
Natureza descentralizada e não permissionada dos criptoativos dificulta monitoramento das transações realizadas por cidadãos brasileiras em exchanges sediadas fora do Brasil, afirmam especialistas, destacando o poder limitado que a regulação terá para evitar crimes financeiros envolvendo ativos digitais.
O projeto de lei 3.825/2019 que regulamenta o mercado brasileiro de criptomoedas aprovado pela Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do senado na terça-feira, 22, oferece maiores garantias para os investidores brasileiros, mas deve ter pouca eficácia no combate a crimes financeiros, uma vez que permite que cidadãos brasileiros utilizem exchanges baseadas no exterior para compra e venda de ativos digitais, afirmam especialistas.
O projeto que agora segue para análise da Câmara dos Deputados determina que caberá ao Poder Executivo a responsabilidade de definir quais órgãos irão normatizar e fiscalizar o mercado de criptomoedas. A partir da entrada em vigor da lei, exchanges de criptomoedas só poderão funcionar no país com autorização do órgão regulador. A prestação de serviços desta natureza sem aprovação formal será considerado crime contra o sistema financeiro, ao contrário do que acontece hoje. Caberá ao executivo ainda definir os ativos que serão regulados.
O texto do projeto favorece que o Brasil estabeleça normas alinhadas aos padrões internacionais para prevenir a lavagem de dinheiro e a ocultação de bens, e combater a atuação de organizações criminosas. Heloísa Passos, CEO da SP4CE declarou ao Cointelegraph Brasil que a regulamentação é um “mal necessário”. De acordo com ela, trata-se de uma “utopia” acreditar que o mercado de criptomoedas pode se manter à margem das leis soberanas de cada nação. A regulamentação dos criptoativos é uma tendência mundial.
No que diz respeito ao texto aprovado pelo Senado, Heloísa Passos destaca que ao mesmo tempo que oferece mais segurança para os consumidores finais e para as entidades do mercado, ele também pode ser encarado como desfavorável aos investidores do varejo:
“Vejo o texto até com bons olhos, porque ele busca regularizar as corretoras ou prestadoras de serviço (incluindo P2P e etc) que atuem em solo brasileiro (ênfase nessa parte) a seguir normas estipuladas pelo Banco Central. Tais normas buscam deixar as negociações mais “rastreáveis” o que incomoda o pequeno investidor, já que cargas tributárias elevadas são o cartão postal brasileiro. Porém, também visam evitar a facilidade com que esquemas de pirâmides financeiras são montados, uma vez que no mercado cripto, hoje, nos conseguimos encontrar até mesmo pessoas físicas fazendo captação de recursos para “investimento em oportunidades” sem a menor segurança para os investidores. Então, o que muda é basicamente o número de informações que as corretoras, fintechs e empresas que atuam (ou pretendem atuar) em solo brasileiro necessitam informar aos órgãos regulatórios.”
No entanto, Heloisa Passos reforça uma opinião compartilhada por especialistas ouvidos em uma reportagem da Folha de São Paulo publicada nesta quarta-feira, que afirmam que muitas exchanges globais de criptomoedas têm passado por cima da legislação específica dos países em que operam e dificilmente será diferente no Brasil. Muito por conta da natureza descentralizada e não permissionada inerente aos criptoativos:
“Ainda assim é possível que os investidores optem por investir de forma virtual através de prestadores de serviço que não atuem (tenham sede) realmente no país. O que ainda torna algumas transações difíceis (ou até mesmo impossíveis) de rastrear pelo governo.”
Por exemplo, a regulamentação não tem poderes para impedir que um cidadão brasileiro compre criptoativos em uma exchange autorizada a operar no país, e em seguida os transfira para uma carteira digital como a Meta Mask ou uma carteira fria, tornando-os inacessíveis ao monitoramento das autoridades competentes.
O PL aprovado no Senado não prevê a criminalização de investidores, mesmo daqueles que realizarem transações em exchanges não autorizadas a operar no país. Assim, especialistas acreditam que será difícil responsabilizar pessoas físicas por operações realizadas fora da jurisdição da lei nacional.
A advogada Mariana Tumbiolo, sócia do escritório Madruga BTW e especialista na área de crimes empresariais, afirmou à reportagem da Folha que o PL aprovado no senado não evita que criminosos acabem recorrendo aos criptoativos para prática de ilícitos como lavagem de dinheiro e evasão de divisas.
Segundo a advogada, a lei não terá efeito sobre pessoas que queiram se valer dos ativos digitais para ocultação de patrimônio. Isso só ocorreria caso os fundos dos investidores baseados no Brasil fossem operacionalmente impedidos de chegar às exchanges internacionais.
Para isso, as autoridades precisariam contar com a cooperação das empresas de meios de pagamento. No entanto, isto não está previsto na lei. E ainda assim seria inútil caso as transferências fossem realizadas através de criptoativos armazenados em carteiras digitais não custodiais, como explicado acima.
O frágil equilíbrio entre dispostivos de segurança e combate a crimes financeiros de um lado e a liberdade de investidores e empreendedores do outro é algo que ainda está em jogo, segundo os especialistas.
Tal como foi aprovada no senado, a regulamentação pode gerar desvantagens competitivas para as exchanges regularmente autorizadas a operar no Brasil, como explicou Bruno Hora, cofundador da InvestSmart à reportagem da Folha de São Paulo:
“O processo de compra de [criptoativos em] uma exchange é muito parecido com comprar algo em um site americano ou chinês. Não é tão simples de impedir. Mesmo para quem não tem o objetivo de esconder patrimônio, as exchanges lá fora vão ser uma opção. A regulamentação tem de existir, mas o excesso pode deixar as exchanges brasileiras menos atrativas, criar uma desvantagem competitiva”.
A opinião é compartilhada por Caroline Nunes, CEO da InspireIP, que teme não apenas que a indústria local seja forçada a competir em condições desiguais com empresas estrangeiras fora da alçada da legislação brasileira, mas também que as leis impostas ao setor acabem desencorajando os empreendedores do país:
“Minha preocupação é que a regulamentação excessiva não acabe matando a própria natureza descentralizada da tecnologia blockchain. Outra preocupação é a evasão de negócios promissores que utilizam criptoativos para jurisdições com regulamentação mais flexível.”
Maurício Magaldi, mentor de blockchain da Tune Traders, vai além e é taxativo em afirmar que a exigência de que os empreendedores nacionais precisem se adequar à regulamentação para desenvolver qualquer projeto vinculado a criptoativos limita o potencial criativo e econômico dos criadores e desenvolvedores brasileiros:
“Por exemplo, se você é uma empresa que quer fazer um projeto de NFT, da forma como a lei foi concebida, você pode ser considerado uma entidade regulada do ponto de vista financeiro. Então, ou você vai estar sob a chancela da CVM [Comissão de Valores Mobiliários] ou do Banco Central dependendo da forma como seu ativo for entendido. Isso pode ser um complicador e obviamente representar um estrangulamento para a inovação no país.”
Ainda segundo Magaldi, a própria tecnologia blockchain oferece os meios mais eficazes para rastreamento de transações ilícitas e, consequentemente, para o combate à lavagem de dinheiro e a outras modalidades de crimes financeiros envolvendo criptoativos. Na prática, a lei não traz benefícios nem para os investidores nem para as empresas que operam no mercado brasileiro, afirma:
“[O projeto de lei] só coloca mais carga sobre as empresas de observância regulatória e de fato não melhora em nada nem para o consumidor final nem para o empreendedor.”
Ponto de vista semelhante foi apresentado por Pablo Cerdeira, do escritório Galdino & Coelho Advogados, na reportagem da Folha. De acordo com o advogado, esquemas de pirâmide financeira independem do ativo utilizado para promovê-las. Muitas vezes elas prosperam por conta de falhas das instituições financeiras do que propriamente pela natureza das criptomoedas:
“Normalmente, quando a lei tenta regular algo que ela não tem capacidade de regular, ela se enfraquece. A lei não vai conseguir alcançar muitos casos. Vai ser uma obrigação que não vai ser eficaz.”
A ênfase da regulamentação em aspectos criminais, ainda que de forma indireta, é prejudicial ao mercado, pois tende a afastar potenciais investidores que não são familiarizados com criptoativos. Enquanto que, por outro lado, as pessoas que já operam nesse mercado não estão em busca de segurança, mas sim de liberdade e de baixos custos operacionais, alertou o advogado Fernando Zilveti na reportagem da Folha.
Os investidores deverão arcar, ao menos em parte, com o ônus do aumento dos custos operacionais das exchanges para atender às novas exigências de fiscalização previstas pela lei.
Durante a sessão na CAE em que o PL foi aprovado, o senador Irajá, relator da matéria, afirmou que o objetivo da regulamentação das criptomoedas no Brasil é promover negócios vinculados ao setor e proteger os investidores, conforme noticiou o Cointelegraph Brasil.
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