Análise da legalidade da norma da Receita Federal sobre as criptomoedas
As criptomoedas representam um avanço tecnológico significativo do ponto de vista computacional com amplas implicações financeiras, uma vez que possibilita que se replique no ambiente digital as características do papel moeda, eliminando a centralização da emissão e da validação das transações financeiras.
Além disso, a abrangência global do sistema implica na facilidade das transferências de valores a qualquer lugar do mundo e a qualquer instante, criando a oportunidade de uma verdadeira globalização que atinge ao próprio indivíduo que passa a poder acessar mercados distantes de sua área geográfica 24 horas por dia.
Os governos de todo o mundo estão de olho nas amplas implicações desse novo sistema e muitos estão se posicionando para acompanhar mais de perto o desenvolvimento do setor.
Nesse contexto, no que se refere à realidade brasileira, várias pessoas têm perguntado sobre a legalidade da Instrução Normativa (IN) 1.888/2019, que impôs uma série de obrigações relativas às operações realizadas com criptoativos, no que diz respeito a prestação de informações à Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (RFB).
Em que pese a representação de uma enorme intervenção do Estado no campo econômico, contrariando os princípios de liberdade econômica e as finalidades da tecnologia que embasa as transações com criptomoedas, tem-se que admitir que, sob o ponto de vista estrito do nosso direito tributário, as obrigações impostas pela referida instrução normativa encontram respaldo constitucional e legal, senão, vejamos.
A IN 1.888 tem o propósito claro de disciplinar as obrigações acessórias relacionadas às operações com criptoativos, e cominar as penalidades decorrentes do descumprimento de tais obrigações.
Cumpre observar que a obrigação tributária pode ser principal ou acessória. A Principal está relacionada com o pagamento do tributo, propriamente dito; a Acessória corresponde a uma obrigação de fazer em sentido amplo, no caso em tela, trata da prestação de informações relativas às operações realizadas com criptoativos à Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (RFB).
Tais obrigações são descritas da seguinte maneira no Código Tributário Nacional (CTN):
“Art. 113. A obrigação tributária é principal ou acessória.
§ 1º A obrigação principal surge com a ocorrência do fato gerador, tem por objeto o pagamento de tributo ou penalidade pecuniária e extingue-se juntamente com o crédito dela decorrente.
§ 2º A obrigação acessória decorre da legislação tributária e tem por objeto as prestações, positivas ou negativas, nela previstas no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos.
§ 3º A obrigação acessória, pelo simples fato da sua inobservância, converte-se em obrigação principal relativamente a penalidade pecuniária.”
No art. 5º, II, da Constituição Federal, tem-se insculpido o denominado Princípio da Legalidade: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
Ademais, o artigo 150, I, dispõe que é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça.
Por sua vez, o Código Tributário Nacional determina, de forma específica, aquilo que apenas a lei pode estabelecer:
“Art. 97. Somente a lei pode estabelecer:
I – a instituição de tributos, ou sua extinção;
II – a majoração de tributos, ou sua redução, ressalvado o disposto nos arts. 21, 26, 39, 57 e 65;
III – a definição do fato gerador da obrigação tributária principal, ressalvado o disposto no inciso I do § 3º do art. 52, e do seu sujeito passivo.
IV – a fixação da alíquota do tributo e da sua base de cálculo, ressalvado o disposto nos arts. 21, 26, 39, 57 e 65;
V – a cominação de penalidades para as ações ou omissões contrárias a seus dispositivos, ou para outras infrações nela definidas;
VI – as hipóteses de exclusão, suspensão e extinção dos créditos tributários, ou de dispensa ou redução de penalidades.
§ 1º Equipara-se à majoração de tributo, para os fins do disposto no inciso II deste artigo, a atualização do valor monetário da respectiva base de cálculo.
§ 2º Não constitui majoração de tributo, para os fins do disposto no inciso II deste artigo, a atualização do valor monetário da respectiva base de cálculo.”
Observe-se que sobre a obrigação principal o CTN tem uma previsão específica no inciso III, no entanto, este silencia em relação à exigência de lei para definição de obrigação acessória.
Na realidade, o permissivo legal dado à Secretaria da Receita Federal para a imposição das obrigações contidas na IN 1.888 é encontrado no artigo 16 da Lei No 9.779/1999, transcrito a seguir:
“Art. 16. Compete à Secretaria da Receita Federal dispor sobre as obrigações acessórias relativas aos impostos e contribuições por ela administrados, estabelecendo, inclusive, forma, prazo e condições para o seu cumprimento e o respectivo responsável.”
Esclarecida a legalidade das obrigações acessórias de prestar informações à SRF, cumpre indagar sobre as penalidades previstas no artigo 10 da instrução.
Primeiramente, é de se destacar que o artigo 97, V, do CTN, é claro ao dispor que somente a lei pode estabelecer a cominação de penalidades para as ações ou omissões contrárias a seus dispositivos, ou para outras infrações nela definidas.
Pois bem, o dispositivo legal, que se equipara a lei, neste caso, é a Medida Provisória No 2.158-35/2001, cujo artigo 57 dispõe o seguinte:
“Art. 57. O sujeito passivo que deixar de cumprir as obrigações acessórias exigidas nos termos do art. 16 da Lei nº 9.779, de 19 de janeiro de 1999, ou que as cumprir com incorreções ou omissões será intimado para cumpri-las ou para prestar esclarecimentos relativos a elas nos prazos estipulados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil e sujeitar-se-á às seguintes multas:
I – por apresentação extemporânea:
a) R$ 500,00 (quinhentos reais) por mês-calendário ou fração, relativamente às pessoas jurídicas que estiverem em início de atividade ou que sejam imunes ou isentas ou que, na última declaração apresentada, tenham apurado lucro presumido ou pelo Simples Nacional;
b) R$ 1.500,00 (mil e quinhentos reais) por mês-calendário ou fração, relativamente às demais pessoas jurídicas;
c) R$ 100,00 (cem reais) por mês-calendário ou fração, relativamente às pessoas físicas;
II – por não cumprimento à intimação da Secretaria da Receita Federal do Brasil para cumprir obrigação acessória ou para prestar esclarecimentos nos prazos estipulados pela autoridade fiscal: R$ 500,00 (quinhentos reais) por mês-calendário;
III – por cumprimento de obrigação acessória com informações inexatas, incompletas ou omitidas:
a) 3% (três por cento), não inferior a R$ 100,00 (cem reais), do valor das transações comerciais ou das operações financeiras, próprias da pessoa jurídica ou de terceiros em relação aos quais seja responsável tributário, no caso de informação omitida, inexata ou incompleta;
b) 1,5% (um inteiro e cinco décimos por cento), não inferior a R$ 50,00 (cinquenta reais), do valor das transações comerciais ou das operações financeiras, próprias da pessoa física ou de terceiros em relação aos quais seja responsável tributário, no caso de informação omitida, inexata ou incompleta.
§ 1o Na hipótese de pessoa jurídica optante pelo Simples Nacional, os valores e o percentual referidos nos incisos II e III deste artigo serão reduzidos em 70% (setenta por cento).
§ 2o Para fins do disposto no inciso I, em relação às pessoas jurídicas que, na última declaração, tenham utilizado mais de uma forma de apuração do lucro, ou tenham realizado algum evento de reorganização societária, deverá ser aplicada a multa de que trata a alínea b do inciso I do caput.
§ 3o A multa prevista no inciso I do caput será reduzida à metade, quando a obrigação acessória for cumprida antes de qualquer procedimento de ofício.
§ 4o Na hipótese de pessoa jurídica de direito público, serão aplicadas as multas previstas na alínea a do inciso I, no inciso II e na alínea b do inciso.”
Concluindo, sob o estrito ponto de vista da legalidade, não há reparos a fazer sobre a IN Nº 1.888/2019.
No entanto, há que se sopesar outros princípios do nosso Estado Democrático de Direito, tais como o da liberdade econômica e da livre iniciativa, olhando-se sempre o tempo em que vivemos, de crescente competitividade internacional pela liderança global nas áreas da tecnologia e das finanças.
Todo esse contexto se torna especialmente importante com o surgimento de tecnologias disruptivas que implicam em formas totalmente novas de organização, produção, consumo e circulação de dinheiro no ambiente virtual, especialmente com as chamadas criptomoedas, das quais o Bitcoin é a mais importante.
Não há dúvidas de que essas novas possibilidades desafiam paradigmas tradicionais, mas esse desafio não deve fazer com que a inovação seja estancada e ameaçada através de uma intervenção estatal prematura, que tem a tendência de intervir sem a devida consideração e sem maior entendimento da inovação que está buscando regular.
Talvez esse seja o caso da instrução normativa da secretaria Especial da RFB, em função da qual podemos esperar, em tese, um enfraquecimento do mercado das Exchanges no Brasil, bem como uma fuga de empresas e investidores para outros países, mais atentos e mais amigáveis à tecnologia da Blockchain e aos criptoativos de uma forma geral.
Autores
Alex F. S. Menezes é advogado, engenheiro, Mestre em Ciências e membro da Comissão de Direito Digital da Subseção de Novo Hamburgo (RS), da OAB.
Ezequiel Gomes é escritor, colunista de vários portais sobre Blockchain e Criptomoedas e repórter do canal Dash Dinheiro Digital.
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