Análise: Criptomoedas na China, como proibir algo que já era proibido?
Um documento emitido pelo Banco Popular da China (PBOC, na sigla em inglês) no último dia 15 de setembro, que foi publicado online nesta sexta-feira, 24, e lista as atividades com ativos digitais consideradas ilegais no país, abalou o mercado de criptomoedas. A notícia, entretanto, não é exatamente nova.
Reforçando posições já bastante antigas e esclarecendo algumas consideradas obscuras, o texto viralizou e foi ecoado como novidade, em muitos casos citando inclusive uma suposta “proibição” da China ao setor, mas a posição do banco central chinês data do já distante ano de 2013 e foi reforçada publicamente em várias outras ocasiões, sendo as mais conhecidas em 2017 e no último mês de maio.
No documento que ganhou as redes sociais e a atenção da mídia nesta sexta-feira, o PBOC afirma que “as atividades comerciais relacionadas às moedas virtuais são atividades financeiras ilegais”. A principal novidade é que o texto esclarece algumas questões que eram consideradas parte de uma zona cinzenta da regulação vigente no país. Por exemplo, a China já proibia a oferta de serviços de corretagem de criptomoedas no país e agora fala em investigação e sanções às empresas estrangeiras que o fizerem.
O texto também lista uma série de exemplos do que está proibido, como operações de câmbio com ativos digitais, negociação de derivativos de criptomoedas, serviços de análise de preços, emissão de tokens, entre outros. A esmagadora maioria, entretanto, já era considerada ilegal governo chinês há bastante tempo.
Em maio deste ano, o mercado cripto também foi afetado por um comunicado semelhante do governo chinês, que reiterou a posição contrária aos serviços com criptoativos e trazia como novidade a proibição de atividades ligadas à mineração de bitcoin. “Os preços das moedas virtuais dispararam e despencaram recentemente, resultando em uma volta das atividades especulativas de comércio de moedas virtuais”, dizia o relatório da época. “Isso prejudicou seriamente a segurança do investimento do povo e prejudicou as ordens econômicas e financeiras normais”.
Em 2013, quando o país adotou a primeira medida contra o setor, o PBOC proibiu instituições financeiras chinesas de lidar com transações de bitcoin. Depois, em 2017, declarou as ofertas iniciais de moedas digitais (ICOs) ilegais, proibiu as corretoras de criptoativos de atuar no país e passou a impedir a troca de bitcoin e outros criptoativos por moedas fiduciarias.
Então, como dizer que a China proibiu algo, se já era proibido há anos? O documento mais recente não traz nenhuma grande novidade – exceto reforçar a posição do país e esclarecer pontos considerados obscuros. É, no máximo, uma tentativa de eliminar o pouco que restava da indústria de criptoativos no país.
Desde a primeira manifestação contrária aos criptoativos e, depois, com todas as vezes em que isso foi reforçado, o mercado cripto não depende mais da China – o principal mercado é atualmente os EUA. Nem mesmo a proibição da mineração, que era concentrada em sua maioria no país asiático, afetou a rede do bitcoin, cujo poder computacional voltou ao mesmo patamar de antes com a migração das empresas para outros países.
Especialistas falam em manobra do governo
“A guerra da China contra o bitcoin não começou agora. Desde 2013 tentam inibir a mineração e comercialização das criptomoedas, pois é um ativo que foge do controle centralizado e dá liberdade ao indivíduo, botando em risco o poder do governo chinês. Os investidores não precisam se preocupar”, disse Marco Castellari, CEO da corretora Brasil Bitcoin.
Há quem vá além e diga, inclusive, se tratar de uma manobra. “O mesmo PBOC imprimiu quase US$ 100 bilhões esta semana. US$ 10 bilhões só hoje e outros US$ 71 bilhões nos últimos cinco dias, com mais impressão provavelmente a caminho no sábado. Para tirar o foco dessa desvalorização massiva do remimbi [moeda oficial da China] e dissuadir os cidadãos chineses de fugir para portos seguros como os ativos de oferta limitada, como o bitcoin, eles apenas se repetem”, publicou o Trustnodes.
O fato do documento ter vindo à tona na mesma semana em que surgiu o temor de calote da gigante chinesa Evergrande, que abalou mercados no mundo todo, também suscitou questionamentos, já que o mercado imobiliário, que representa 20% do PIB da China, está em perigo e pode provocar a necessidade de ainda mais intervenções do governo, mais desvalorização da moeda e maior interesse pelos ativos digitais, sobre o qual o governo não tem nenhum controle.
“O bitcoin e a ascensão do mercado cripto são vistos pelas autoridades locais como fatores de risco ambiental, energético e ameaças potenciais à estabilidade do sistema financeiro” explicou Safiri Felix, diretor de Produtos da Transfero.
O escritor Robert Kiyosaki, autor do best-seller “Pai Rico, Pai Pobre”, falou inclusive que a medida atenta contra a liberdade: “A China anunciou esta manhã nova repressão aos criptoativos. O que isso significa? Que a China está perto de lançar uma criptomoeda do governo. Se os EUA seguirem pelo mesmo caminho, e a moeda digital do Fed significar a proibição do bitcoin, os EUA se tornarão um governo centralizado, como a China, dando fim à nossa liberdade”.
Especialista em análise de criptoativos, Michael van de Poppe, do site Cointelegraph, citou a facilidade com que o mercado é afetado por notícias cujo objetivo, segundo ele, é provocar medo, incerteza e dúvida (FUD, na sigla em inglês): “O mercado sempre reage com intensidade ao FUD. Impressionante”.
Independentemente dos motivos por trás da decisão do governo chinês em voltar ao assunto, o fato é que o documento publicado no último dia 15 e que ganhou as manchetes nesta sexta-feira não traz grandes novidades. Reforça uma posição já conhecida, traz clareza às restrições e pode provocar tensão no mercado no curto prazo, mas não afeta os fundamentos dos ativos digitais e não é capaz de frear o avanço e o crescimento do setor de cripto e blockchain no mundo.
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