Aliada ou suspeita? Guerra na Ucrânia é um teste para a indústria de criptomoedas

Executivos de criptomoedas sinalizam disposição para cumprir as sanções, mas a descentralização em si coloca criptomoedas em uma posição vulnerável.

Já faz duas semanas desde que a Rússia iniciou a primeira ação militar em larga escala na Europa no século 21 – a chamada “operação especial” na Ucrânia. O conflito militar imediatamente desencadeou sanções devastadoras dos EUA, da União Europeia e aliados contra a economia russa, e colocou a indústria de criptomoedas sob pressão e em uma posição altamente vulnerável.

Enquanto o mundo observa atentamente, o espaço cripto deve provar-se uma comunidade madura, financeira e politicamente responsável, e deve desafiar as acusações de ser um refúgio seguro para criminosos de guerra, regimes autoritários e oligarcas sancionados. Até aqui, está indo relativamente bem. Mas, apesar das garantias dos líderes  do setor, alguns especialistas dizem que a natureza descentralizada das criptomoedas podem comprometer seriamente seus esforços.

O precedente das doações

Em meio à onda de apoio à Ucrânia por parte de cidadãos, instituições e governos flobais, a nação estabeleceu um precedente crucial. Em 26 de fevereiro, terceiro dia da operação militar da Rússia, o governo ucraniano anunciou que aceitaria doações via criptomoedas. Ele fez a declaração no Twitter e listou os endereços das carteiras de Bitcoin (BTC), Ether (ETH) e Tether (USDT) do governo. A medida veio com a aprovação oficial de um anúncio prévio feito pelo vice-primeiro-ministro do país, Mykhailo Fedorov, de 31 anos.

A ideia de um país europeu angustiado aceitando oficialmente ativos digitais de todos aqueles prontos para estender a mão soou tão chocante que até Vitalik Buterin inicialmente duvidou da autenticidade da declaração. Mas Tomicah Tillemann, ex-assessor sênior de dois secretários de Estado dos EUA, confirmou a validade das carteiras, citando um ex-embaixador da Ucrânia. A exchange de criptomoedas com sede em Kiev, Kuna Exchange, assumiu a adminstração da infraestrutura para doações

A empresa de análise de dados de redes blockchain Elliptic estimou que essas carteiras, e as de outras iniciativas relacionada à defesa da Ucrânia chamada “Come Back Home”, receberam US$ 63 milhões em criptomoedas em 9 de março. O dinheiro veio de mais de 120.000 doações individuais.

Os doadores incluem o fundador da Polkadot, Gavin Wood, que enviou US$ 5,8 milhões; um doador anônimo, que deu US$ 1,86 milhão, que “parece ter sido produto da venda de NFTs criadas por Julian Assange e pelo artista digital Pak”; e o CEO da Chain.com, Deepak Thapliyal, que doou cerca de US$ 290.000. No entanto, a grande maioria das doações veio de pessoas comuns em valores inferiores a US$ 100.

Uma iniciativa chamada UkraineDAO foi lançada no início da guerra por Nadya Tolokonnikova, que é membro do grupo ativista russo Pussy Riot, ao lado de Trippy do Trippy Labs e membros do PleasrDAO. Levantando ETH via PartyBid, a UcrâniaDAO reuniu doações de proeminentes indivíduos e de empresas do setor de tecnologia, como a plataforma de assinaturas on-line OnlyFans e o cofundador do Reddit, Alexis Ohanian. Em 3 de março, a UkraineDAO havia levantado mais de US$ 6 milhões em Ether.

Embora esses números não cheguem nem perto da quantidade de apoio financeiro que os EUA e a União Europeia devem enviar à Ucrânia, que pode chegar a cerca de US$ 16 bilhões, eles estabelecem um precedente único de apoio imediato, direto e horizontal a uma causa humanitária – sem dúvida, um tour de force pela comunidade global de criptomoedas.

Ansiedades regulatórias

Além do entusiasmo generalizado pelo apoio imediato àqueles em extrema necessidade, o conflito revigorou o debate em torno da questão central da regulamentação internacional: a capacidade potencial das criptomoedas de subverterem sanções financeiras como as impostas pela comunidade global à Rússia. Em 2 de março, em uma audiência do Comitê de Serviços Financeiros da Câmara dos EUA, o representante da Califórnia, Juan Vargas, perguntou ao presidente do Banco Central dos EUA, Jerome Powell, se as criptomoedas poderiam ser uma “saída” para realização de transações financeiras, já que a Rússia enfrentava a possibilidade de ser cortada da rede global SWIFT. Powell não foi muito específico em sua resposta, mas optou pela linguagem cripto-suspeita padrão:

“Não existe o tipo de estrutura regulatória que precisa existir. […] O que é necessário é uma estrutura – em particular, maneiras de impedir que essas criptomoedas sem lastro sirvam como veículo para o financiamento do terrorismo, comportamento criminoso geral, evasão fiscal e afins.”

Simultaneamente, um grupo de senadores que inclui alguns críticos consistentes do setor de finanças digitais, como Elizabeth Warren e Sherrod Brown, enviou uma carta à secretária do Tesouro, Janet Yellen, expressando sua preocupação. Apontando para os exemplos da Coreia do Norte e do Irã, os autores compartilharam seus temores de que as criptomoedas possam ser usadas para facilitar transações internacionais para contornar as sanções.

Curiosamente, entre as várias ferramentas para evasão – como a dark web e as carteiras de criptomoedas – o texto sublinhou uma possível “implantação de um rublo digital”, que não tem nada a ver com o sistema financeiro descentralizado global.

Ecoando as preocupações regulatórias dos EUA, o ministro das Finanças da França, Bruno Le Maire, mencionou as criptomoedas durante um discurso sobre aplicação de sanções naquele mesmo dia. Ele assegurou ao público que a UE está “tomando medidas” contra os possíveis movimentos da Rússia para usar criptomoedas, “que não devem ser usadas para contornar as sanções financeiras”. Os pontos de Le Maire foram amplamente reafirmados por seu colega alemão, Christian Lindner.

Mais cedo, em 25 de fevereiro, a presidente do Banco Central Europeu, Christine Lagarde, vinculou o sucesso das sanções à Rússia, impedindo o regime de Vladimir Putin de recorrer a criptomoedas, à adoção da regulamentação dos Mercados de Criptoativos “o mais rápido possível”.

A estrutura regulatória estava agendada para votação no Parlamento Europeu em 28 de fevereiro, mas foi adiada em meio a preocupações de que seria mal interpretada como uma proibição de mineração de criptomoedas que utilizam a Prova-de-trabalho como mecanismo de consenso. Caso do Bitcoin, por exemplo, e do Ethereum antes da transição da rede para o consenso baseado em Prova-de-participação.

Resposta da indústria

A indústria foi rápida em responder às alegações das autoridades, tanto retoricamente quanto por meio de ações práticas. Tanto as publicações de criptomoedas quanto a grande mídia publicaram análises diferenciadas sobre por que as elites da Rússia não podem substituir efetivamente o acesso ao SWIFT por criptomoedas, apresentando vários motivos importantes.

A primeira é a rastreabilidade das transações registradas em livros-razão públicos, especialmente quando se trata de enormes somas de dinheiro digital. Em segundo lugar, há a questão da volatilidade e das taxas de transação, que dificilmente agradarão aqueles que buscam movimentar dezenas ou centenas de milhões de dólares.

Depois disso, vem o gargalo do saque: ainda há poucos lugares no mundo onde se pode sacar enormes somas de dinheiro sem ser notado, e os agentes da lei globais estão cientes deles. E, como dizem os especialistas, uma operação na escala de uma economia nacional exigiria acumular grandes quantidades de criptomoedas, o que não é uma tarefa trivial em um universo financeiro onde o dinheiro é minerado – e não impresso.

A capacidade atual das criptomoedas de servir como uma ferramenta furtiva, rápida e barata para transferir muito dinheiro de jurisdições sancionadas para outros lugares parece bastante limitada em comparação com a rede existente de infraestrutura offshore que é utilizada para abrigar fundos de qualquer origem nos últimos 50 anos.

A indústria de criptomoedas em geral demonstrou prontidão conspícua para apoiar o esforço global para impedir as ações da Rússia na Ucrânia e cumprir os padrões existentes contra lavagem de dinheiro e KYC (conheça seu cliente). Em um thread no Twitter, o CEO da Ripple, Brad Garlinghouse, explicou por que é quase impossível para plataformas internacionais de criptomoedas estabelecidas evitar sanções: “Para converter criptomoedas em moedas fiduciárias, exchanges/etc dependem de parceiros bancários que podem perder suas licenças se alguém na lista da OFAC conseguir escapar.”

Esse argumento foi ecoado por Brian Armstrong, da Coinbase, que também ofereceu sua opinião no Twitter e duvidou que os oligarcas russos estivessem usando criptomoedas para evitar sanções.

Não se trata apenas de conversas no Twitter – alguns dos principais players estão agindo preventivamente para facilitar a aplicação das sanções. Em 7 de março, a Coinbase publicou uma postagem no blog de seu diretor jurídico, Paul Grewal, na qual ele pediu o uso de criptomoedas para ajudar a garantir o cumprimento das sanções econômicas.

A plataforma informou que bloqueou 25.000 carteiras associadas a indivíduos ou entidades russas que podem estar envolvidas em atividades ilícitas. As exchanges de criptomoedas Qmall, BTC-Alpha, CEX.IO e Bithumb também congelaram ou encerraram contas de usuários russos.

O que vem a seguir?

Discutindo esses desdobramentos recentes com o Cointelegraph, Ross Buckley, professor de inovação disruptiva da KPMG-KWM na Universidade de Nova Gales do Sul, Sydney, compartilhou uma visão bastante sombria sobre uma virada regulatória global que será fortemente influenciada pela guerra na Ucrânia. Em sua opinião, as nações que impõem sanções financeiras veem qualquer potencial para contornar as sanções como uma redução de sua soberania:

“Na minha opinião, a crise na Ucrânia e as sanções à Rússia representam um enorme desafio para a indústria de criptomoedas. Se as criptomoedas forem usadas para evitar sanções, uma forte repressão regulatória deve ser esperada. É altamente improvável que as nações soberanas tolerem a perda de sua capacidade de impor sanções.”

Haohan Xu, CEO da rede global de negociação de ativos digitais Apifiny, não descarta um cenário em que as elites russas realmente tentem usar ativos digitais como uma ferramenta de transação global ao lado de opções mais óbvias, como a rede estatal chinesa UnionPay. Falando ao Cointelegraph, ele explicou:

“O método de excluir a Rússia de participar dos sistemas financeiros globais controlados pelos EUA forçará a Rússia a adotar outros sistemas, o que, naturalmente, impulsionará o crescimento de sistemas que os EUA não controlam. […] Nesse caso, as criptomoedas seriam legitimadas em algumas partes do mundo e se tornariam vítimas de regulamentos rígidos de países inimigos da Rússia.”

O desfecho das discussões entre os reguladores globais e a indústria de criptomoedas seria definido pela disposição desta última em abrir mão de mais em torno do anonimato e da descentralização, que são partes vitais de seu DNA.

Como Xu observou: “Enquanto a maior parte da comunidade está alinhada com o apoio à Ucrânia, as pessoas estão divididas sobre o tema dos principais players do setor que buscam conformidade.” Em contraste com a abordagem proativa da Coinbase e a garantia dos líderes de opinião do setor, algumas vozes enfatizaram a necessidade de manter os princípios fundamentais das criptomoedas.

Embora esta posição possa parecer menos convincente no meio de uma crise humanitária, a questão é certamente mais compreensível a longo prazo. “Em questão está o argumento mais amplo de centralização e controle versus descentralização e liberdade”, argumenta Xu.

Isso representa um desafio único para a indústria de criptomoedas, acredita Buckley, pois a descentralização torna “quase impossível” evitar o cenário de regulamentação de linha dura. Ele não se convence com argumentos que apontam para a rastreabilidade de ativos descentralizados, duvidando que a nova economia digital tenha muitas vantagens sobre o sistema offshore em termos de transparência:

“Na ausência de um coordenador centralizado do setor, não consigo ver como as criptomoedas como um todo não serão usadas para contornar as sanções e, assim, provocar uma forte reação regulatória”.

Embora Buckley acredite que as criptomoedas certamente podem ser uma força para o bem, ele acha possível que as potências ocidentais não vejam dessa maneira se a Rússia as usarem com sucesso para mitigar os efeitos das sanções.

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