A hora da inovação no mercado brasileiro de valores mobiliários
Uma das principais preocupações ao desenvolver modelos de negócios inovadores, especialmente em setores da economia com expressiva carga regulatória, é a segurança jurídica. No mercado de valores mobiliários, que lida com a captação de recursos da poupança popular, não é diferente.
Sobre esse mercado incidem regras rigorosas para a autorização de ofertas públicas de valores mobiliários e padrões de conduta elevados endereçados aos gestores de ativos. Tais normas visam, sobretudo, a minimizar problemas relacionados à assimetria informacional e potenciais conflitos de interesse.
Apesar de a importância desse conjunto de regras não poder ser subestimada, em certas circunstâncias, ele pode representar uma barreira à entrada no mercado de valores mobiliários.
Os custos para adequação das atividades às normas vigentes são substanciais, especialmente para startups, que podem estar tentando emplacar uma atividade inovadora que não se enquadra estritamente na moldura vigente. Isso acaba contribuindo para uma menor concorrência no mercado de valores mobiliários, o que pode significar, em última instância, um menor bem-estar em termos econômicos.
Ciente desse cenário, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) tem adotado medidas profícuas com o intuito de abrir as portas do mercado de valores mobiliários à inovação. Vivemos um momento único e o mercado tem muito a ganhar com isso.
Novos modelos de negócio como robôs de investimento, plataformas de investimentos em pequenas e médias empresas, mercados secundários de ativos alternativos, atividades que fazem uso de blockchain, inteligência artificial e big data, estão sendo fomentados pela autarquia.
Em agosto de 2019, a CVM criou um canal de comunicação exclusivo para receber e debater inovações financeiras: a “Ponte da Inovação”. Por meio desse veículo, a CVM passou a permitir um contato direto e desburocratizado com empreendedores dedicando um grupo de trabalho interno à iniciativa.
Apesar de incipiente, esse diálogo do regulador com os agentes, significou uma atitude concreta da autarquia no sentido de dar atenção ao tema. Somam-se a esta iniciativa os convênios que a CVM tem firmado com instituições de ensino, mais recentemente com a UFPR, cujo escopo, nesse caso, envolve o estímulo à produção de estudos acadêmicos para doutorandos com foco em inovações financeiras.
Outra iniciativa que não pode passar despercebida foi a audiência pública lançada em 26 de março de 2020, que propunha aprimoramentos no marco regulatório para as plataformas de investimento coletivo (crowdfunding de investimento).
De acordo com a autarquia, só em 2019, esse modelo de negócio contribuiu para a captação via internet de R$ 59.043.689, valor esse inteiramente direcionado a empresas de pequeno e médio porte. Além disso, conforme ponderado pela CVM, o índice de reclamações de investidores em relação a este tipo de negócio é baixo e, até o momento, não foram identificadas fraudes.
Essa constatação animou a CVM a propor em audiência pública a ampliação dos limites de captação, a expansão das possibilidades de divulgação das oportunidades de investimento e a flexibilização das regras relacionadas à dinâmica da condução das ofertas.
O produto dessas medidas pode representar uma revolução na forma como pequenas e médias empresas angariam capital, uma vez que elas passarão a ter um veículo para acessar o mercado de capitais.
Não é só isso, a CVM quer discutir a possibilidade de as plataformas de investimento atuarem como mercado secundário, oferecendo liquidez para os ativos adquiridos em ambiente virtual. Na prática, as plataformas passariam a atuar como uma “bolsaa de valores alternativa”, permitindo que investidores realizem a compra e venda de ativos em tempo real.
Se aprovada, essa medida é capaz de fomentar a utilização de blockchain no mercado de valores mobiliários, já que esta tecnologia contribui para a segurança das transações, atuando como uma espécie de “clearing house” automatizado.
Aqui não estamos especulando excessivamente, a utilização de blockchain como forma de captar recursos já é uma realidade. Também não estamos falando apenas das já conhecidas ICOs – Initial Coin Offerings, mas também da oferta de ativos alternativos via blockchain, como precatórios (vide Mercado Bitcoin) e créditos imobiliários (vide ReitBZ, iniciativa ligada ao BTG Pactual).
Por fim, no último dia 15, a CVM publicou a aguardada Instrução nº 626, que regulamenta a constituição e o funcionamento de ambiente regulatório experimental (sandbox regulatório). Inspirada em experiências internacionais bem sucedidas – em especial do Reino Unido, Cingapura e Hong Kong –, a CVM irá permitir que empreendedores possam “brincar” na “caixa de areia” do mercado de valores mobiliários, em um ambiente de teste supervisionado.
Na prática, a CVM irá conceder autorizações temporárias para que pessoas jurídicas selecionadas possam colocar em prática modelos inovadores no âmbito do mercado de valores mobiliários, com um ônus regulatório reduzido.
Essa oportunidade pode viabilizar o ingresso de diversos negócios transformadores, cujos impactos no mercado ainda são difíceis de prever. Mas a tendência é a ampliação da concorrência, a redução de custos para os agentes do mercado e melhores preços para os investidores.
As medidas que vêm sendo tomadas pela CVM demonstram uma verdadeira aposta na inovação como instrumento de transformação. De maneira geral, espera-se que essas ações favoreçam a democratização do mercado de valores mobiliários brasileiro, contribuindo para um maior protagonismo desse espaço.
Ganham os empreendedores, que podem inovar e exercer suas atividades com maior segurança jurídica; ganha o regulador, que pode acompanhar de perto e acumular lições importantes durante as suas atividades de supervisão; e ganha o mercado, com o incremento da concorrência e possivelmente uma maior inclusão financeira da população.
Sobre o autor
Ciro Martins é advogado do escritório Borba, Simões Barbosa, Bessone e Cristofaro Advogados, mestrando em Direito pela UERJ, na linha Empresa e Atividades Econômicas, graduando em Ciências Contábeis pela PUC-MG e tem formação em finanças pela Alumni COPPEAD.
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